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Apr 16 2013

Entrevista com o Sonidista Guido Berenblum

Após ter participado do seminário “O Som no Cinema Contemporâneo: conceitos e novas tecnologias”, na Semana ABC 2012, o diretor de som argentino Guido Berenblum nos falou sobre a importância de pensar a sonoridade de um filme durante todo o processo da sua criação. No seminário, que aconteceu na Cinemateca Brasileira em São Paulo no dia 11 de maio de 2012, Berenblum destacou partes do roteiro do filme O Pântano (2001), escrito e dirigido pela cineasta Lucrecia Martel, nos quais apareciam indicações sonoras concretas. Segundo Berenblum, o trabalho de um diretor de som perpassa pela concretização dessas indicações sonoras do roteiro, pela definição das escolhas técnicas e de um fluxo de trabalho com o som ao longo do processo criativo do filme. Conversas prévias à gravação do som podem, antes de tudo, definir um “modo de acercarse” uma opção estética para o filme que inclua os sons.

Técnico de som direto e editor de som cinematográfico, Guido Berenblum é diretor de som dos filmes A Mulher Sem Cabeça (2008) e A Menina Santa (2004) da cineasta Lucrecia Martel; Café dos Maestros (2008) de Miguel Kohan; Hamaca Paraguaya (2006) de Paz Encina; Los Guantes Magicos (2003) de Martin Rejtman; Garage Olimpo (1998) de Marco Bechis, entre outros. Ministra a oficina “Edição de Som em Formato 5.1”, na Escuela Internacional de Cine y Televisión de San Antonio de Los Baños (EICTV) desde 2010.

Em conjunção à conversa inicial, anexamos uma segunda parte da entrevista, realizada em Buenos Aires (julho de 2012), na qual Berenblum falou sobre temas relacionados ao uso do som nas películas em que trabalhou como diretor de som, sobre o início da sua carreira profissional e sobre sua parceria com a cineasta Lucrecia Martel.

Damyler Cunha*: Como começou a sua trajetória profissional no cinema?

Guido Berenblum: Eu comecei quase por acidente a minha história com o cinema. Quando estava no ensino médio estudava percussão e bateria e tinha um amigo que trabalhava com um músico que se chama Leo Sujatovich, e que foi durante vários anos o tecladista do músico super conhecido na argentina, o Luís Alberto Spinetta. Esse meu amigo sumiu do emprego e acabei ocupando a vaga dele, como assistente desse músico. Fiquei trabalhando para ele durante um ano e nunca tive contato com os equipamentos de som. Mas, foi lá onde conheci um técnico de som que possuía um programa de estudos de gravação de som, de uma universidade americana que tinha estudado. Começamos a estudar juntos esse programa. Ao mesmo tempo, eu tinha um amigo que estudava numa escola de cinema em Buenos Aires e me chamou para ajudar a finalizar o som de um curta-metragem em super-8. Bom, trabalhei neste curta e descobri um mundo completamente novo pra mim, alucinante, que foi uma espécie de vírus que me atingiu. Depois trabalhei em distintos estúdios, muitas vezes de graça, para adquirir experiência. Também fiz muita dublagem de programa de televisão, filmes e documentários. Também fiz muitos outros curtas-metragens de cineastas que atualmente são consagrados, mas que na época estava também no início de suas carreiras. Depois fui trabalhar em um estúdio dos técnicos de som Carlos Abbate e José Luis Díaz. Estas duas figuras do cinema argentino foram muito importantes para mim porque foi com eles, neste estúdio, que pude completar minha formação como técnico de som ao longo de quatro anos. Depois de algum tempo, em 1997, um diretor me ofereceu a oportunidade de participar do seu filme como diretor de som e acompanhei todas as etapas do processo de gravação e pós-produção do som.

 

D.C.: Guido, gostaria que você falasse um pouco sobre as suas escolhas para o uso dos sons nos filmes da Lucrecia Martel. Em O Pântano, vocês mostram os sons sem revelar a imagem da sua fonte sonora. É como se tentassem desvincular os sons das suas causas para criar uma forte sensação de expectativa, de tensão para o espectador. Tem um músico concreto, o Michel Chion, que nomeia esse som como “acusmático”. Um som fora-de-campo que pela sua repetição, sem revelar a sua imagem física, incita a curiosidade e o olhar do espectador. Com diferentes ritmos e tons, o som cria uma experiência audiovisual que coloca o ouvido e a mente do espectador num “estado de espera” contínuo em relação à resolução dos eventos sonoros ocultos na imagem. Neste primeiro filme, tal revelação é adiada até uma das últimas cenas do filme, com a constatação da personagem Momi (Sofia Bertolotto) de que “no vi nada”. Gostaria de saber como foram as escolhas em relação ao tratamento e ao uso do som nesta primeira parceria de trabalho entre vocês? Vocês pensaram antes das filmagens em como concretizar esses eventos sonoros presentes no roteiro?

G.B.: Bom, para começar, eu tenho uma pequena parcela de responsabilidade em relação ao som desta película, já que não participei de todos os processos de pós-produção, gravei o som direto, montei os diálogos e fiz todas as dublagens. Acho que essa questão, talvez pudesse ser bem respondida pela Lucrecia Martel e pelo Hervé Guyader, chefe da edição de som. Mas, enfim, posso te dizer que 90% dos sons das películas da Lucrecia surgem do pensamento dela. Nós podemos fazer um montão de sugestões, por um lado é a maneira como a gente traduz essa questão em algo real, por outro lado tenho a sensação de que muito do que você aponta nessa questão analítica sobre o som não sei se nasce de um pensamento intelectual de uma forma de contar, mas de uma forma que foi se construindo sobre a prática. Dos fatos se chega a uma forma de contar, que nasce de uma ideia concreta que vem do roteiro, quando falamos do princípio da película. Também deveríamos discutir, sobre esse exemplo em relação aos sons off, acusmáticos. Há quem diga que os sons nunca estão off, porque antes de tudo, são invisíveis, mas estão aí, são reais. O que temos é o enquadre do nosso olhar; os sons do rumor da cidade e do bafo de trânsito em uma cena dentro de um quarto estão contidos numa cena, somente estão fora do campo de visão que a câmera quer nos mostrar. Então, isso é uma discussão filosófica, que não tem muita importância na prática. Agora, gostaria que você me desse um exemplo particular dessas películas, quais são os eventos que pode me apontar.

D.C.: Por exemplo, os latidos do cachorro, que no início do filme aparecem como um ruído banal, cotidiano e que depois se transformam em um som mais monstruoso, contaminados por uma fábula sobre a rata-africana contada pelos personagens adolescentes. No filme, acompanhamos a imaginação da criança Luchi (Sebastián Montagna) em relação a esse som que não se vê até o ponto desse som se transformar na causa que incita uma curiosidade mortal e culmina no final do filme. Outro exemplo seria a ambiência construída com os tiros e trovões no início do filme que demarcam uma instabilidade na narrativa – a presença da precipitação de um acidente que pode se concretizar a qualquer momento.

G.B.: Para mim, o ponto mais importante de toda essa questão é que o som se torna muito mais subjetivo, sugestivo e atrativo quando se escuta, mas não se vê. Isso exige e gera inquietude, não uma inquietude por estar imóvel, mas uma inquietude no sentido de ficar procurando sempre “o que é isso? O que está acontecendo?”. Inclusive, não se chega a perguntar o que é isso? A película segue correndo, passando adiante no tempo, correndo pelos olhos e ouvidos do espectador. Em um tempo que não se pode deter essa película, ela segue avançando, segue passando coisas; mas ao mesmo tempo estou em um segundo nível de atenção escutando que há algo que não segue. Isso expande muitíssimo o espaço fílmico e exige do espectador um compromisso de alguma maneira, senão um engajamento que também pode causar outro efeito, que é o de perder-se totalmente e desistir desse compromisso com a película. Não sei o quanto de tudo isso é uma questão tremendamente intelectual, me parece que é um pouco do que havíamos falado antes, de uma cultura auditiva que existe. Não como uma cultura auditiva formal, acadêmica, não é isso, mas uma cultura de reconhecer que somos capazes de ouvir no nosso cotidiano, em reconhecer situações sonoras que traz consigo mesmo um legado que trazemos de nossa infância, de coisas muito comuns. Eu por exemplo, me dei conta disso, do que se passa com as pessoas desde a infância. Todas essas impressões da vida também são impressões sonoras, simplesmente vivemos recordando coisas que estão envoltas em sons, que produziram sonoridades diferentes. Podemos então falar de cultura auditiva, mas, com certeza, a possuímos desde crianças. Então, acho que toda essa questão sobre o uso do som no espaço fora-de-campo que aparece nas películas de Lucrecia Martel estão dadas também porque ela mostra uma parte muito particular com a câmera e deixa um mundo afora. Se pensarmos, podemos dar como exemplo suas últimas películas, A Menina Santa (2004) e A Mulher Sem Cabeça (2008), aonde corta as cabeças dos personagens para fora-de-quadro com um enquadramento axial, convertendo uma situação muito simples em uma situação enrarecida.

Se você está acompanhando uma situação na imagem e, de repente, alguém levanta e tem cortada a sua cabeça isso gera uma estranheza, porque estamos acostumados a ver as pessoas falando em quadro. Ao mesmo tempo, essa situação me atrai ainda, porque sigo escutando o diálogo. Também temos uma questão em relação à distância, porque temos o quadro fixo, as pessoas seguem seus caminhos, levantam e o quadro se mantém fixo. O enquadramento e posição da câmera mantêm um olhar como se alguém estivesse espiando por uma fresta ou por uma fechadura. Neste lugar, por mais que a pessoa se mova não consegue variar muito o campo de visão, mas segue escutando tudo isso. Então, acho que os filmes mantém um pouco essa sensação.

 

D.C.: Concordo com você Guido, quando aponta essa relação entre o som e a imagem no filme da Lucrecia. O enquadramento axial, que divide o corpo entre as regiões cranial e caudal; a posição ritualizada dos corpos na horizontalidade, como se estivesse em “estado de espera” e a movimentação dentro do quadro ressaltam mais ainda essa função dos sons fora-de-campo. Mas, ainda tenho outra pergunta. Assistindo A Menina Santa e A Mulher Sem Cabeça tive a impressão de que existe outro fator decisivo nessa articulação entre som e imagem, que aparece como uma eminência constante: a presença da morte. Na Mulher Sem Cabeça, isso é bem mais evidente, com a confirmação da morte de uma criança; mas na Menina Santa essa presença para mim surge sutilmente, ainda na primeira cena da piscina, na qual Helena (Mercedes Moran) comenta para Amália (Maria Alché), que está cansada, mas usa a palavra morte – “no estás como morta?”. Depois, essa ideia sobre a morte aparece em diversas situações: em comentários, quando Amália comenta que o quarto da mãe parece uma tumba; com Josefina (Julieta Zylberberg) assustada, falando sobre um homem nú que cai do telhado e surge na cena atrás de um véu de cortinas brancas – “são reflexos de um morto”. Mais adiante, temos uma cena em que Helena aparece em uma posição estranha, deitada de bruços sobre uma cama, imóvel como se estivesse morta. Enfim, gostaria de pontuar esse motivo, que para mim está impregnado nos filmes conferindo esse clima de suspense, da eminência de uma catástrofe. Como se o ambiente que os personagens convivem estivesse ameaçado pela presença constante de uma assombração. Esta primeira cena da piscina, em A Menina Santa, foi editada por você?

G.B.: Não, eu gravei o som direto e editei uma parte do dos diálogos, do som ambiente, mas não fui eu que editei essa cena, tudo isso foi feito no Chile, com David Miranda.

 

D.C.: Bom, eu gosto muito desta cena, porque a articulação entre o som e a imagem, mais especificamente, os enquadramentos das orelhas e o movimento rítmico criado pela inclusão e a retirada de sons das cigarras, sobrepostos pelos sussurros da Amália (Maria Alché), tudo isso parece pontuar a marcação de um ponto de escuta subjetivo da protagonista. Uma experiência auditiva da personagem, particular e única, pontuada por sons invisíveis e inaudíveis para o espectador e que só ela escuta. Assim, como somente Amália escuta o som inaudível – um sinal de Deus da sua vocação religiosa. O que representa esse sinal inaudível no filme? Ou ainda, o que representam nesta narrativa o ruído estridente do Theremin, o estrondo da queda do homem nu ou o bel canto entoado por Mia Maestro no início do filme? Tenho a impressão de que nunca vamos saber responder essa pergunta, porquê o som desta película parece habitar um lugar ambíguo, que não se classifica nem como unicamente objetivo, nem como subjetivo. Pontuo que, antes de tudo, usar ruídos banais para representar um pensamento ou um estado de espírito de um personagem é diferente do que usar uma voz, mais ainda, do que usar um diálogo para explicar as causas dos acontecimentos. Desde o primeiro som destas películas, os escutamos descolados da imagem referida. Tenho a impressão de que a edição e a mixagem desses sons acentua uma diferença na ambiência a cada corte na imagem – que mostra o primeiro plano da orelha de Amália e Dr. Jano. O som exerce uma dupla função, assim como a palavra, confere ritmos e ambientes sonoros as imagens, mas também “significa algo” porque se refere ao cotidiano desses personagens, têm um sentido ambíguo na narrativa. Nesta cena, Amália olha Jano, Jano olha Helena e depois Amália vê Dr. Jano olhar Helena. Estes três pontos são marcados pela variação dos sons ambientes e por esses cortes que mostram em primeiro plano a orelha. Sendo que, no plano que mostra Helena andando dentro da piscina, vemos à distância ela segurar a própria orelha. Um acúfeno inaudível a molesta? Ouvimos esse som inaudível que emerge do silêncio? É sobre esse uso figurativo do som que quero perguntar. Somente, Jano e Amália desejam pelo olhar e mostram o espaço pelo seu ponto de vista. Nos três momentos de variação de intensidade e de ritmo dos sons ambientes que temos nesta cena, ouve-se um ruído de som sugado, de força centrípeta. Enfim, temos todo um ambiente sonoro dado pelo movimento e textura desses sons, uma atmosfera que nos filmes se torna mais ambígua pelo uso desse tema auditivo, pelo destaque das orelhas, por pequenos eventos sonoros.

G.B.: Esse ruído entra com a frase “34 graus”, isso também está vindo de qualquer lado, “quien hablo?”, já que não vemos a imagem dessa voz masculina que diz a temperatura da água (neste plano, vê-se Amália deitada em primeiro plano e ao fundo uma piscina aonde está nadando Dr. Jano). Também aqui tivemos um problema nas filmagens. Esta cena foi gravada perto de uma mata e gravamos à noite, na verdade, na última hora da tarde. Estava cheio de insetos do ambiente que apareceram na gravação do som direto. Então, fizemos de um problema técnico uma escolha estética e cobrimos com mais ruídos de insetos alguns trechos do filme. Nos momentos em que Amália sussura, ouve-se menos esses ruídos porque dividimos o espaço dado ao ruído com a voz, divimos nossa atenção auditiva entre esses dois elementos. Quando nesta cena, troca-se o ponto de vista sonoro de Amália para Jano existe um enrarecimiento, uma diminuição da densidade dos sons ambientes para através do uso do silêncio conferir mais tensão à cena. Aqui, temos que levar em consideração essa questão dos insetos que foi assumido como uma marca do filme, assim como em O Pântano.

D.C.: É engraçado, porque ao mesmo tempo em que essa marcação tenha sido realizada para cobrir um “defeito” técnico, eu tenho a impressão que o montador se aproveitou disso para marcar a experiência auditiva da personagem Amália.

G.B.: Sim, sim, e acho que marca também essa experiência auditiva com o silêncio, porque muda a qualidade sonora quando deixa isolado o personagem Jano, confere mais silêncio neste momento, a mim me soa um pouco artificial, mas depois retira o silêncio. No sentido, de que quando o olhar de Jano encontra Helena estão isolados, concentra-se uma atenção aí.

 

D.C.: Guido, no momento da captação dos sons ou no momento da pós-produção, enfim, gostaria de saber se você e Lucrecia discutem muito sobre o uso do som nas películas ou se as coisas surgem intuitivamente?

G.B.: Sim, de algumas cenas falamos especificamente sobre o uso do som, em outras vamos recorrendo aos caminhos que surgem na criação do filme. Vamos ajustando as coisas. Um exemplo mais concreto posso te dar com uma cena de A Mulher Sem Cabeça, quando Verônica vai ao campo de futebol. Essa cena começa com um plano geral muito grande e com muitas informações: tem crianças jogando futebol, um esguicho espirrando um jorro d’água e muitas mulheres caminhando ao redor do campo de futebol, numa pista de atletismo. A água esguicha e vai criando uma névoa esbranquiçada ao redor da pista, quando a Verônica e as outras mulheres passam ao lado de um alambrado, que divide o campo de futebol das crianças pobres (fora-de-quadro) e a pista de atletismo dos sócios do clube ouvimos um estrondo da bola batendo no alambrado que chama a nossa atenção para essa divisão. Isso foi um delírio meu, porque não tinha uma justificativa narrativa para esse evento sonoro acontecer, mas tinha uma vontade minha de organizar e amarrar tudo nesse plano a partir de uma cadência, pelo movimento dos sons. Isso porque tínhamos um som insuportável neste plano, o esguicho de água – um som muito irritante, áspero, mas também muito rico porquê fica muito tempo soando, um ruído contínuo. Então, não podíamos retirá-lo e, ao mesmo tempo tínhamos que apresentar os garotos jogando, chamar a atenção do espectador para este outro foco. Junto com os garotos tinha um treinador, com um jeito pseudo-militar – dando ordens aos garotos – mas não estava muito claro essa fala, já que não queríamos colocá-la em primeiro plano sonoro.

Então para mim, tinha que acontecer algo que fosse muito violento, um chacoalhão, como o que aconteceu no momento do acidente. Não vimos o acidente, mas pressentimo-lo por causa desse estrondo, que é uma situação violenta e que não foi contada de uma maneira clássica, porque vemos de um ponto de vista que não nos mostra o espaço, não é o do protagonista e nem da vítima. Esse ponto de vista se encontra ao lado da protagonista, mas não nos informa muito o quê se passou. Bom, o que eu procurava para esta cena do campo de futebol era reviver um pouco essa sensação desmedida, portanto procurei um estremecimento que remetesse à violência que existiu na cena do acidente, como se fosse um estremecimento que marcasse a culpa da protagonista. Depois de alguns planos, essa mesma protagonista assume de uma maneira muito banal, dentro de um supermercado na fila do caixa que matou alguém. E pensamos, como? Nesta situação também, usamos todos os tipos de ruídos do supermercado, pessoas passando ao seu redor, existe muita movimentação nesta cena e a personagem resta apática, imóvel, sua presente é notada apenas por esta frase. Então temos uma cena que é banal, cotidiana e tem uma resolução estranhíssima.

Bom, de todas as maneiras, temos dada essa situação onde a câmera não revela de onde veio esse ruído fora-de-campo, acusmático. Prosseguindo com o exemplo da cena do campo de futebol… No plano seguinte, vemos um menino caído no chão. Temos outro plano, da protagonista entrando no banheiro. Neste banheiro se escuta os gritos das crianças jogando basquete e que chegam de todas as direções. Depois ouvimos um ruído estranho que assusta Verô (Maria Onetto). Um homem com uma solda saí detrás da porta do banheiro. Seguimos escutando o som fora-de-campo das crianças enquanto Verô abraça aos prantos o soldador, que sai do quadro. Escutamos então todo um barulho de moeda, depois sons de moedas e um objeto mais pesado caindo numa máquina. Enfim, no próximo plano o soldador retorna segurando uma água e a joga no pescoço de Verô. Toda a ação do personagem foi dada pelo som fora-de-campo e outras muitíssimas coisas acontecem fora-do-campo, mais ou menos resolvidas. Neste contexto, os sons das crianças tornam-se super agressivos, em outra ocasião talvez não.

 

Beatriz Cruz**: No roteiro Guido, estava previsto o que vai estar no campo de visão do espectador e que estará fora-do-campo?

G.B.: Não. Isso decidimos no momento da filmagem, exceto algumas coisas que vieram marcadas como, por exemplo – se segue escutando tal coisa….Ela [Martel] decide isso no set de filmagem.

 

B.C.: Por exemplo, nesta cena que você descreveu, onde muitas coisas acontecem fora-de-campo, quantos microfones usaram?

G.B.: Não me recordo muito bem, mas geralmente uso apenas um microfone (em momento posterior, na entrevista em Buenos Aires, Berenblum completa a informação falando que usaram três microfones – um direcional e duas lapelas, mas só foram úteis no momento do abraço). Bom, eu prefiri usar também um microfone aéreo porque havia contato físico – os abraços – e os lapelas soam muito ruins para esse tipo de gravação. Usei os lapelas, mas também era uma situação que podia ser resolvida com um direcional porquê não havia quase texto, o soldador pergunta – “se siente bien” e Verô (Maria Onetto) responde – “Gracias”. Nesta cena, a atriz Maria Onetto chorou de verdade, de uma maneira muito intensa, mas em silêncio e estava de costas, também não vemos. Então fiquei em dúvida, se colocava ou não uma dublagem aí de soluços. Mas esses sons orgânicos são difíceis de dublar, é difícil para o ator recriar isso com credibilidade. Mas não, enfim, a gravação de som desta cena foi muito simples. Gravamos separados os ruídos da máquina, em outro local. Depois gravamos também em separado os ruídos elétricos do soldador, no local mesmo, e foi isso.

Bom, e num momento posterior, com certeza, isso tudo foi um pouco mais trabalhado em pós-produção. De todos esses filmes com a Lucrecia, talvez o mais difícil de captação de som direto foi o primeiro, O Pântano. Porque tinha outra dinâmica, haviam situações muito mais complicadas, com muitas pessoas. Há também situações dessas em A Menina Santa, com pessoas falando, entrando e saindo do quadro. E isso, que parece ser super complicado do ponto de vista do registro do som direto pode ser resolvido com um único microfone. Se tenho um microfone escondido aonde o personagem vai passar [fora-do-quadro] ou mesmo um lapela, (mas não seria muito eficiente usar um lapela, já que desejo dar uma sensação que o som está se afastando, porquê o lapela me proporciona esteticamente um plano sonoro muito próximo, escutando acerca da orelha)… Portanto, filma-se, os atores dizem os textos e nós captamos o som de um único ponto se estão fora-de-quadro. Eu estava dizendo outro dia, que existem momentos em que usamos o som desta maneira e outros momentos resolvemos de outra maneira o registro desse som.

É também uma maneira de resolver em relação ao orçamento muitos problemas na rodagem. Com o registro do diálogo fora-do-quadro, a questão toda é saber como gravar isso. Se peço para um ator falar há quatro ou cinco distâncias diferentes do microfone, vou ter também muitas possibilidades de escolha e alguma terá que servir. Essa é uma maneira de gravar o som direto que aprendi com a experiência, no dia-a-dia, mas talvez para outros técnicos de som esse registro poderia ser resolvido de outra maneira, cada um tem o seu estilo. E essa minha maneira, talvez se aplique no meu trabalho com Lucrecia Martel, mas nem sempre com outros cineastas. Por exemplo, sobre essa película que falei, de um amigo meu (Juntos para Siempre, de Pablo Solarz), os textos tinham que ser ditos da mesma maneira em que estavam escritos, essa maneira de gravar o som não funcionava. Primeiro, porque nunca se recordava os textos e depois porque eram textos extensos, então como colocar esse texto em sincronismo com a imagem depois?… Não havia onde cortar, então não funcionava….

Estou tentando lembrar um exemplo deste filme, enfim, acho que tínhamos uma sala muito grande e chovia muito. O ator tinha que falar ora muito longe ora muito perto da mãe que estava sentada em um ponto da sala, mas estava impossível porque havia muita interferência, muita chuva, o lugar era muito grande, mais difícil de controlar a acústica. Não se podia dublar, porque não ia ter dublagem, então tínhamos que gravar e depois tentar tratar esse som, com muitos planos distintos e diferenças de qualidades sonoras, diferenças de qualidade de atuação e nada funcionava, os sons não se igualavam em termos de acústica… Então, nesta situação é muito mais difícil captar o som de um único ponto, porquê esse ator se movimenta dentro do quadro e está ora mais próximo e ora mais distante. Igualmente, tem uma parte disso tudo que pode ser resolvido com efeitos de reverberação, em pós-produção, mas na verdade é que se tenho a acústica do lugar é muito mais fácil se aproveitar disso.

 

D.C.: Em relação ao volume de som usado nos filmes da Lucrecia, tenho uma sensação auditiva de que foram usados sons muito mais intensos e densos para compor os ambientes sonoros no Pântano do que em A Mulher Sem Cabeça, onde os ruídos aparecem mais sutis, em volume mínimo. Não sei, a sequencia de abertura dos dois filmes me passa essa impressão. O Eduardo Santos Mendes gosta de falar em sala de aula que nos filmes da Martel, já na primeira cena, temos um resumo, uma sonoridade anunciada que nos fornece uma impressão geral do filme, uma percepção auditiva do que aparecerá nos próximos planos. Já nos primeiros minutos, ao assistir estes filmes o espectador terá que lidar com um “ouve-se de tudo e vê-se de menos” ou como você mesmo disse – vê-se pelas frestas. Mas, deste ouve-se, temos diferentes tipos de experiência auditiva ao assistir os dois filmes. Podemos com certeza, ampliar essa experiência sonora para um modo de percepção global, que compreende uma experiência mais ampla, a audiovisual. A temporalidade e a movimentação dos sons destes dois filmes parecem ser muito diferentes, e não só pela opção de fixar a câmera e diminuir os acontecimentos da narrativa. Na terceira película nos concentramos praticamente, em um único evento e uma única personagem, mas também temos menos eventos sonoros e ruídos menos estridentes. No primeiro filme, vocês elegeram o ruído das taças, trovões, uma chuva mais tórrida, tudo externo a casa parecia ser violento, mais estridente, mais intenso. E não sei, mas em A Mulher Sem Cabeça, tenho a impressão que tudo está mais contido, que os sons dos objetos são mais silenciosos, internos da personagem. Escuto algo como sininhos metálicos que desaparecem, sutilmente, ao passar um carro, depois escuto um pingo da chuva mais grosso até se transformar em gotículas de chuva… Enfim, acha que vocês foram mais contidos no uso dos sons neste filme? Não quero contestar o seu exemplo sobre a busca de um estrondo na cena do campo de futebol, mas me parece que neste filme vocês foram muito mais contidos em relação à densidade do espaço sonoro?

G.B.: Não consigo perceber isso em relação ao som. Na verdade, neste filme tínhamos menos diálogos, então, talvez por isso, você teve essa sensação auditiva. Neste filme, o que se fez foi modificar a velocidade da câmera (creio que filmamos em 30 fps), porque quase não vemos as bocas e tem-se muito pouco texto em quase todos os planos, então o som fora de sincronia percebe-se menos, está muito sutil. O som é o da tomada em tempo real, mas a imagem não, porque queríamos ressaltar uma sensação de que o tempo está passando mais devagar, um leve descompasso nas ações do filme.

D.C.: Guido, li uma entrevista sua e da Lucrecia para a SonidoAnda (palestra na FADU em 2008), onde vocês comentam sobre o uso dos sons dos objetos em cena. Nos filmes da Lucrecia isso teria produzido o que você denominou como um “modo de acercarse”. Nessa mesma entrevista, a Lucrecia fala sobre os seus primeiros contatos com um espaço sonoro e narrativo através de diferentes ambientes sonoros e diferentes sentidos experimentados na escuta dos contos narrados pela sua avó, quando ela era criança. Também lembro de ler outra entrevista dela para o crítico Jean Michel Frodon, em 2004, no lançamento da Menina Santa em Cannes (Cahiers du Cinema, n. 593), onde ela comentou que os sons conferiam uma tonalidade sonora (tonalité sonore), como se fossem um guia para definir as regras da mise-en-scène dos filmes. Enfim, na busca da concretude, vou lembrar de um exemplo disso para mim nos filmes. Em todos as três películas, pode-se apontar momentos em que alguém conta algo ou rememora um evento e ocorre variações do ambiente sonoro, conferindo um clima de suspense. Em O Pântano, temos a fábula da rata-africana que é contada por uma das adolescentes (Vero, Leonora Balcarce); em A Menina Santa, a amiga da Amália (Maria Alché) e Josefina (Julieta Zylberberg) também conta uma história de terror popular, sobre uma mulher que pede ajuda na beira da estrada para salvar um bebê, mas na realidade está morta. No terceiro filme, posso lembrar da cena da avó vendo o vídeo e escutando uma voz estranha, de uma pessoa morta. Enfim, talvez nos dias atuais, com a violência muito real e audiovisual, a eminência da morte saída da boca de crianças ou lembrada por uma idosa de cama já não seja assim tão impressionante e assustador. Porém, acho que, de alguma maneira, o espaço sonoro da experiência auditiva infantil da Lucrecia permeia esses filmes, como se fosse mesmo uma “puesta en escena sonora” única ou como você mesmo nomeou, como um “manera de acercarse” através das impressões auditivas. Quero que você fale um pouco sobre esse “modo de acercarse”. O que da sua maneira de gravar os sons contribuiu para concretização desse “modo de acercarse”. Você consegue lembrar se, nestes três momentos, vocês captaram os sons e as vozes com diferentes distâncias e enquadramentos (posições) de microfones? As variações das qualidades acústicas do som ambiente como sua textura, intensidade e o ritmo, captadas pelo som direto foram decisivas para criar esse clima de suspense?

G.B.: Na realidade, se trata antes de tudo de uma resolução em função do que acontece no ambiente de filmagem, plano a plano, pensando sempre em como se dará o processo de montagem. Nos reunimos para pensar sobre a nossa intenção do uso do som, mas nunca sabemos como vamos resolver um cena, antes de chegar no set de filmagem. Portanto, não há uma discussão prévia as filmagens sobre as distâncias do microfone ou sobre a acústica do lugar. Contudo, sempre a produção dos filmes e a própria Lucrecia se encarregam de reservar um tempo na diária de filmagem para poder gravar os sons que não foram captados nas tomadas de som direto – vozes, diálogos fora-de-campo ou qualquer outro som que necessite desse cuidado. Então, terminamos as rodagens uns 40 minutos antes e se gravam estes sons.

D.C.: Sobre A Menina Santa, você comentou que gravaram muitos offs de sons do hotel, coberturas de vozes que não se encontravam na cena e que nem tudo foi usado na mixagem. Vocês colocaram um pouco dessas vozes no surround para criar um desenho no ambiente sonoro? Esta escolha não é uma decisão muito comercial para distribuição de filmes em países de línguas diferentes, já que fica inviável fazer legendas para essas vozes. Quais as dificuldades no mercado internacional por manterem essa escolha na mixagem?

G.B.: Essa mesma situação está presente em A Mulher Sem Cabeça, em relação a sua distribuidora internacional – a Focus Internacional. A banda sonora internacional (M&E) foi rejeita pela distribuidora porque se ouviam vozes em espanhol nos ambientes. Como exemplo, posso destacar uma cena na abertura do filme, em um plano onde escuta-se as vozes de crianças brincando (fora-de-campo), enquanto algumas mulheres passam perfumes e carregam bandejas de alumínio (formas de forno). Em geral, os dois filmes foram mixados cheios de vozes no som ambiente, porque são parte fundamental da trama, da sonoridade desses ambientes. Nunca poderíamos ouvir estes ambientes sem vozes, como se fosse um ambiente “neutro”, e muito menos com vozes dubladas. Além disso, estas vozes foram gravadas em Salta devido a sonoridade do sotaque local, nunca teriam a mesma importância na trama se fossem gravadas em Buenos Aires. Então, foi uma decisão da Lucrecia Martel manter essas vozes na banda sonora e não modifica-las. Para manter essas vozes na banda internacional, foi necessário que a diretora enviasse uma carta para a Focus, aonde afirmava que de nenhuma maneira se aceitaria que fossem retiradas estas vozes dos ambientes e que não deviam dublá-las, já que se tratava de uma decisão estética dela, essencial para definição da mise-en-scène dos seus filmes.

 

* Damyler Cunha esta finalizando seu mestrado na ECA/USP, onde estuda a representação do som nos filmes da Lucrecia Martel e é também produtora audiovisual.
** Beatriz Cruz é atriz da peça “Salta! Uma reação à Lucrecia Martel”, uma pesquisa de criação e encenação teatral do Coletivo Teatro Dodecafônico em reação às obras de Lucrecia Martel.

 

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