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Oct 3 2017

Entrevista com o Sound Designer Waldir Xavier – Parte 1

WX

“Então é toda essa interação que vem muito pela montagem e pela dramaturgia. Acredito muito nessa experiência sensorial, da importância do som como experiência física, afetiva, hipnótica, não mensurável e não controlável… Aí é realmente onde eu tenho mais prazer no trabalho de concepção de som.” 

Waldir Xavier  

  1. PERCURSO

Guilherme  Farkas – como foi sua formação e percurso em cinema?

Waldir Xavier – Você falou sobre percurso… Eu fui por várias áreas na verdade. Sendo mais direto, em termos de faculdade eu fiz jornalismo, comunicação. Mas quando eu fiz comunicação já era pensando um pouco em cinema. Eu entrei na faculdade em 1986 mas já meio pensando em cinema. Na minha época funcionava assim, Cinema era dentro de comunicação social, podendo ser jornalismo, publicidade ou cinema. E cinema era só na UFF e eu passei na UFRJ.

GF – Você nasceu no Rio de Janeiro?

WX – Nasci em Niterói mas sempre vivi no Rio, desde 1 ano. Então eu fui para o jornalismo. Nesse percurso tiveram vários flertes, sempre com atividades artísticas. Eu fazia desde muito cedo línguas, fiz francês e fazia letras em francês na Aliança Francesa. Que era uma atividade que eu fazia junto com a faculdade. Fazia dança, fiz a Rangel Viana – curso de formação profissional, fui dançarino da companhia aérea do Circo Voador, também era uma coisa que eu flertava. Mas de todo modo meu pensamento maior era em cinema. Os dois primeiros anos eram formação comum para todos e nesse momento eu fui fisgado por filosofia. Então meu interesse virou filosofia e cinema as minhas atividades principais. Comecei a frequentar o IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ) para fazer disciplinas optativas. Uma coisa que é importante é que no 2º semestre da faculdade, que era uma turma muito interessada em filosofia (muitos sou amigo até hoje), tinha um professor do IFCS que dava aula de filosofia, o Roberto Cabral de Melo Machado. Que é um especialista em Michel Foucault, Gilles Deleuze e filosofia contemporânea. Nós então montamos um grupo de estudo. O Roberto estava buscando pessoas interessadas em filosofia mas que não eram docentes da graduação em filosofia, ou seja, nós (risos). Éramos 6 alunos e montamos um grupo de estudo sobre o “Thus Spoke Zarathustra” do Friedrich Nitzsche. Após isso continuamos estudando com ele. Pois Roberto tinha uma teoria dizendo: “eu tenho certeza que se me derem 10 alunos durante 4 anos eles serão melhor formados do que uma turma convencional da faculdade de filosofia”. Nós bancamos essa e continuamos fazendo todos os cursos: quem gostava de teoria da comunicação puxa um Foucault, “As Palavras e as Coisas”. Foi uma turma muito legal e continuei me interessando por filosofia e sempre flertando com cinema. Muita Cinemateca. E a única atividade que eu tive em Jornalismo de fato, foi crítica de cinema. Eu escrevi um pouco numa revista de cinema carioca que se chamava Cinemim, do Fernando Albagli, que faziamos várias coisas. Quando cheguei no 6º período do curso de jornalismo, quando não tinha mais como fugir, eu acabei indo morar na França para fazer faculdade de filosofia.

GF – Mas essa sua ida à França teve alguma outra circunstância maior ou algum motivo específico ?

WX – Tiveram muitos motivos na verdade, políticos sobretudo. Em realidade muito parecido com o que estamos vivendo hoje: uma desilusão com o Diretas Já que não passou, era adolescente nessa época. Estava muito desiludido com o Brasil. Então tem duas coisas: sair do Brasil e vontade de estudar fora. Toda essa parte de estudo que eu tive aqui no Brasil era muito influenciado pela França. Já tinha feito curso de francês na Aliança Francesa, fazia literatura também por lá. E toda referência cultural e cinematográfica vinha pela Aliança e pelo consulado da França, frequentei muito a Cinemateca deles e a do MAM também. Tinha uma pessoa da cinemateca francesa ligada ao MAM, tinham muitas retrospectivas de cinema francês, depois teve o Estação Botafogo. Então a França era uma referência muito forte para mim. O Roberto Machado (IFCS/UFRJ), ele viu ali o grupo, viu que eu tinha essa coisa com a França, já tinha estudado os livros de cinema do Deleuze, que na época ainda nem eram traduzidos no Brasil, eu lia em francês mesmo. Tinha uma amiga que era francesa também na faculdade… Quando o Roberto fez um curso preparando um livro dele sobre Deleuze, pediu para cada aluno do curso trabalhar um dos livros do Deleuze. E é claro que eu escolhi o Imagem-Tempo. Ele então me conhecia já e disse que eu deveria ir para Strasburgo porque lá tinham dois professores de filosofia da arte que eu iria adorar que é são Jean Luc Nancy e o Philippe Lacoue-Labarthe. Fiquei maluco, me candidatei, fiz prova e tudo e fui aceito. Fui então para Strasburgo no final de 1988. Então o Roberto Machado abriu minhas portas para filosofia, acabei não seguindo mas do meu grupo de 6 pessoas, 2 são professores do IFCS. Ele me marcou muito. Acabamos perdendo totalmente o contato. Foi engraçado porque 10 anos depois eu fui, encontrei com ele e falei “pô Roberto, eu fui lá para Strasburgo que você me indicou e tal” e ele nem lembrava (risos).

GF – No curso de Jornalismo tinha algum professor que já falava sobre som no cinema?

WX – Cara, som, só muito depois. Para mim era cinema. Som nada, absolutamente nada. Eu nunca fui muito técnico nem de fotografia, tinha mais a paixão de escrever, ler e via muitos filmes. Quando cheguei em Strasburgo, adorei filosofia e a cidade. Lembro que tinham dois professores diretores da escola que no ano que eu cheguei não estavam, estavam na Alemanha. Porque aquela região é muito influenciada pela Alemanha, e assim muito influenciada por Martin Heidegger. Então esses dois professores diretores não estavam lá mas tinha outro professor que era conferencista da escola que é o Daniel Payot. Ele foi como um padrinho para mim, fazia filosofia da arte com ele e adorava, poderia ter feito isso da vida. Meu primeiro ano chegando na França, depois de estudar com ele, ele me diz: “se você quiser ficar aqui eu lhe oriento”. Mas aconteceu que eu estava super interessado em cinema e tem a ver com o Cinemim e o jornalismo: minha única atividade com cinema era escrever. Nem era muito mas foi meu primeiro trabalho com cinema. Eu estava na França, super influenciado pela cultura francesa e louco para ir para o Festival de Cannes. Então teve o primeiro festival de cinema de Strasburgo e escrevi para o diretor de Cinemim falando que queria fazer a cobertura. Então mandei e eles publicaram. Falei para ele me enviar para Cannes (risos). Nessa época o Brasil estava completamente em crise, isso em 1989. Ele disse que me pagaria somente por laudas escritas mas não poderia custear a viagem. Eu acabei descobrindo a existência do Prêmio da Juventude do Festival de Cannes. Que tem até hoje e que é um júri formado por jovens de até 25 anos, e que concedem esse prêmio. Eu, muito cara de pau, entrei para o concurso e ganhei pela Ausácia-Lorena que é a região de Strasburgo. Fui para Cannes como membro do Júri da Juventude do festival, em 1989. Fiquei duas semanas, vi aqueles filmes todos, o presidente do júri era o Win Wenders. Tinha o Jim Jarmush apresentando Trem Mistério (1989), ele que tinha abado de fazer Down By Law (1986), Stranger Then Pradise (1984) e tudo mais. Tive a oportunidade de entervistá-lo, via quatro filmes por dia. Achei aquilo tudo muito incrível, vi que aquele mundo existia e que tinha gente que trabalhava e vivia disso. Quando eu voltei para Strasburgo, estava lá a carta da universidade de Paris que eu tinha me inscrito para o curso de cinema. Eles estavam me convocando para uma prova oral para entrar no curso. Terminei meu ano letivo em Strasburgo, fui super bem e o Daniel Payot falou que eu estava convidado para continuar lá. Disse a ele que estava gostando mas que tinha essa chance em Paris. Fui então fazer a entrevista na Paris VII e eles acabaram me aceitando e me mudei para Paris. E aí segui na área.

GF – Foram quase três formações então, aqui na UFRJ em jornalismo, na Universidade de Strasburgo em filosofia da arte e na Paris VII em cinema ?

WX – Eu não me formei em nada na verdade. Na UFRJ fiquei 2 anos e em Strasburgo 1 ano apenas. Lá em Paris eu consegui uma equivalência, porque já tinha feito cadeiras no Brasil e então acabei entrando no terceiro ano. Aí sim eu comecei a estudar cinema e ter a atividade como minha principal.

GF – Você tinha algum familiar ou conhecido na França nessa época?

WX – Não tinha absolutamente nada por lá. Não sou nada de família francesa, não tinha bolsa, fui na cara e na coragem. Em Strasburgo era mais fácil por ser cidade pequena, vida universitária. Chegar em Paris foi uma coisa que me abalou porque eu realmente tinha que trabalhar sério. Em Strasburgo trabalhava na biblioteca e vivia numa casa de estudantes. Mas em Paris já não tinha mais esse esquema e fui logo obrigado a trabalhar como garçom, 4 noites por semana. O que acabou me prejudicando bastante porque não tinha tempo de ir ao cinema de noite. Queria depois prestar o concurso para La Fémis que é o antigo IDHEC. Eu nunca consegui preparar direito, porque tem um dossiê de entrada e por causa da necessidade de trabalho não pude me preparar. O que acho que foi ruim porque pelo que minha vida virou depois, vejo que teria sido muito bom. Eu cheguei a dar aulas na La Fémis, então acho que foi uma pena eu não ter estudado lá.

GF – Na Paris VII foram quantos anos?

WX – Foram 2. Fiz o que eles chamam de licenciatura e depois o mestrado, que é algo bem confuso na verdade. Pois até hoje meu diploma não é reconhecido no Brasil, por isso não posso nem pensar em dar aulas em faculdade. Nessa licenciatura eram cursos muito maravilhosos, que é inclusive base para o curso que eu dou na AIC (Curso de Som em Cinema e TV na Academia Internacional de Cinema – Rio de Janeiro), que eram com professores que não eram técnicos, que falavam sobre milhões de coisas. Sobretudo um que é o Jean Douchet que era um professor de história da arte e era professor na Paris VII e eu seguia também os cursos dele na Cinemateca Francesa. Que basicamente era esse hábito de ver o filme e debater logo depois. Então o Douchet foi uma referência importante. Basicamente acho que minha influência de cinema é totalmente francesa nesse sentido, influência de ter visto filmes franceses, de ter sido totalmente deslumbrado e alucinado pela Nouvelle Vague, Godard sobretudo. Quando eu vi O Acossado (Jean Luc-Godard – 1960) fiquei muito impressionado. E também pela fisolosifa, pela Cahiers du Cinéma, pela política de autor, dessa identificação de autoria. Enfim, minha referência é totalmente por ai.

GF: E na Paris VII tinha alguém que chamou sua atenção para o som?

WX: Não. Para mim eu não via distinção, som era linguagem de cinema. Para mim a maior referência, que vou falar daqui a pouco, é montagem, mais do que qualquer outra coisa. Sempre fui muito mais fascinado pela ideia de montagem do que de fotografia, ou de som, figurino e etc. Para mim Godard é montagem. E depois fui descobrir que montagem também é som. Para mim é uma coisa muito junta. Então eu fiz um mestrado que eu não concluí, não defendi a dissertação. Foi uma coisa que eu fiz meio ainda influenciado pela filosofia. Fiz um texto e uma pesquisa sobre a noção do tempo no cinema do Win Wenders dos anos 1970, pegando Alice nas Cidades (1974) e Rei das Estradas (1976), meio interessado nessa construção narrativa, desconstrução do tempo, tempo histórico… Mas chegou um ponto que como eu já estava há bastante tempo ligado a universidade, entrei na UFRJ em 1986 e estava nesse mestrado em 1992. Vi então que para cinema eu não queria ser acadêmico. Porque havia sido a principal razão pela qual eu não quis seguir em filosofia. Eu sabia que não queria vida acadêmica, isso era algo importante que eu tinha. Achei que cinema no final das contas era o que me permitiria a não abdicar de muitas outras coisas, se for pensar em artes, dança, artes plásticas, escrita. Mas quando decidi que não seguiria a carreira acadêmica, ja conhecia algumas pessoas em cinema, me disseram que eu tinha que decidir alguma coisa específica para trabalhar. Na hora eu pensei em montagem. Quando eu fui para França, um amigo da UFRJ me passou o contato de uma irmã que morava por lá. Foi uma pessoa que conheci no dia que eu cheguei em Paris. Ela era casada com um francês, me receberam super bem, ficamos amigos. Esse marido dela, Antoine, trabalhava em montagem. Então dois anos depois que eu ja estava em Paris, estava decidido em fazer montagem e resolvi falar com ele. Ele disse que estava trabalhando mas poderia me apresentar a uma amiga montadora. Ele me apresentou a ela num almoço. O que aconteceu foi que o Antoine ia fazer um curta como assistente dela mas no final não pode mais. Então entrei no lugar dele, fui fazer meu primeiro estágio na verdade em montagem 35mm no estúdio Boulagne Billancourt (1922-1992) que não existe mais. Que era o maior estúdio de filmagem e de mixagem na França. Tinham uns 10 estúdios de mixagem, isso em 1992 aproximadamente. Nos curtas fui assistente dela e realmente emendei. Montagem de imagem e som. Magnético. Naquela época não tinha propriamente a figura do “editor de som”. Ai que vem a confusão do som na minha vida. Porque não tinha muito essa divisão. Você montava imagens e preparava as bandas de som para a mixagem e o montador era presente na mixagem até o final. Então eu comecei a trabalhar com montagem e decidi fazer uma formação nessa área. Nos anos seguintes da minha vida eu fiz isso. Porque na França tem o Centro Nacional de Cinema (CNC), que dá o número de certificado para os filmes e tinha regulamentações das profissões, com tabelas. Meu objetivo era ter uma carta profissional de montador, porque para você trabalhar em filmes de produção francesas, eles só aceitavam pessoas com carta. Na verdade a formação que eles pedem para ter a carta de assistente de montagem, é você ter feito 3 longas-metragens completos e ter feito 1 estágio de pelo menos 3 meses em um laboratório. Eu acabei fazendo tudo isso. Fiz um estágio num laboratório, cortei negativo, marcação de cor. Porque o montador sempre foi o interlocutor imediato, não tinha finalizador. O montador era o responsável pela cópia para entregar na montagem do negativo e ficar até o final para ver se estava tudo certo. E essa foi a minha escola. Adorava trabalhar em positivo, em magnético, e quando você passa para a etapa de ser assistente, a grande tarefa do assistente no magnético, além de organizar a sala de montagem que já era um trabalho imenso, as sobras, os números e etc, a grande tarefa era fazer a edição dos diálogos, em magnético. E minha história com som começou assim. Começou sendo montador. E minha outra grande escola de som, foi que fazendo longa-metragem na França, nessas equipes que eram pelo menos 3 pessoas na montagem (chefe, assistente e estagiário), eu por exemplo como estagiário, uma das primeiras tarefas era seguir a gravação dos ruídos de sala. Então eu passava uma semana ouvindo ruídos de sala, fazendo as anotações e não era nada digital. Então som eu aprendi fazendo, trabalhando em longa-metragem. Aprendi o que era foley fazendo foley com os melhores artistas de foley da França, fazendo dublagem com os grandes diretores de dublagem da França, com texto impresso na banda magnética. Os franceses inventaram uma coisa incrível que era um texto com a legenda manuscrita com timecode para poder passar em sinc na película 35mm. E aprender com os mixadores que gravavam os ruídos de sala, com os mixadores que gravavam dublagem e participando da mixagem. Porque quando você montava os diretos você ficava obviamente na sala de mixagem e você era quem estava preparando as bandas para os mixadores. Sempre montando som e imagem junto. Depois de um tempo começaram a surgir os editores de som.

GF: Você parou de fazer montagem de imagem e passou a montar somente som?

WX: Não, porque nessa época na França as pessoas faziam os dois. As várias pessoas que eu trabalhei como assistente de edição de som eram pessoas com as quais eu já tinha trabalhado como assistente de imagem. Não tinha muito essa diferença. A grande diferença se deu quando veio o digital. Porque aí eu também fui um sortudo porque a França foi um país, por ter uma indústria muito forte, por ter muitos profissionais e por ter muitos laboratórios, e não ser os EUA, a França foi muito rebelde e recusou muito a entrada no digital. Imagine, aqueles grandes montadores e montadoras que passaram a vida montando em moviola, que nunca tinham visto um computador na vida, não quiseram se adaptar à montagem digital. Na França nessa época era um luxo tão grande que a gente montava em digital e conformava o positivo para ir em projeção. E esse foi um grande trabalho do assistente que começa a ser ambivalente (mexendo em positivo e em computador). Então era óbvio, a gente de montagem, a primeira coisa que se fazia numa edição, trabalhando lá do laboratório, era projeção de rush. Filmou, a equipe de montagem vai com a equipe de filmagem assistir o copião do dia. Com as anotações de montagem que já começa a edição projetando em 35mm para ver se a imagem está boa. Algo que não existe mais hoje. Então depois, todo o processo de montagem passava pela projeção 35mm em sala. Então passei muito tempo nesse luxo maravilhoso que é cortar o filme em positivo. Eu adorava trabalhar em positivo! Eu fui rebelde para entrar na edição digital, muito por causa disso, pelo valor do plano, da luz… Nós eramos do tempo em que uma tiragem não muito boa de um plano, de uma sequência, tira de novo para poder montar direito. Como o som foi a primeira parte da edição que realmente passou para o digital, os assistentes de montagem foram os primeiros a serem formados nas máquinas digitais. Então assim fui formado em Protools quando eu era assistente de um filme do Bertrand Tavernier, porque naquela época o sistema francês de cinema pagava a formação em edição digital, nesse momento de transição. Então nessa onda eu fui formado em Avid, Protools, DT1500 fiz várias formações assim. Porque naquela época não tinha nenhum deles vingando. E logo sendo assistente de longa já confirmado e dominando as máquinas de montagem digitais, e com muitas poucas pessoas formadas nisso, não parei de trabalhar. E começaram muito a me chamar para fazer trabalho de som. E comecei a fazer filmes incríveis no som e a me apaixonar por isso, a entender o vocabulário próprio, entender essa nova tecnologia e cada vez mais eu ficava fazendo som e imagem. Até o ponto em que eu já tinha feito vários filmes como assistente em som e que já me sentia pronto para assinar como editor de som. E começaram a me propor coisas super legais. E comecei a fazer mais som.

 

  1. PARCERIAS, COLABORAÇÕES e PROCESSSOS – PENSAR O SOM DE UM FILME

 

foto 2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

diretor egípcio Youssef Chahine.

 

Lembro que estava como assistente nos filmes do Youssef Chahine, que é o egípcio, ele ganha o prêmio de aniversário da 50º Festival de Cannes, essas coisas também influenciam no cinema, e logo depois, eu que já estava a uns dois anos para fazer o Central do Brasil (1998), como assistente de um grande editor de som francês, quando chegou na hora de fazer o filme de verdade, o editor estava ocupado, eu já tinha feito um longa como chefe com o mixador do filme e ele disse para eu fazer. E assim fiz Central do Brasil que depois ganha Berlim (Central do Brasil venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlin de 1998). Tudo isso para dizer que a minha lógica de som vem da montagem. Eu nunca fiz captação de som direto, nunca fui para escola de técnico de som, tudo que aprendi de som, aprendi em pós produção, em montagem e em mixagem. Eu aprendi basicamente com os montadores e com os mixadores com os quais eu trabalhei. Tive um pouco essa passagem de vir do magnético e ver o início do digital, ver a mixagem passar de mono para os “os dolby’s” todos, Dolby A, Dolby SR, Dolby Digital e etc. Fui aprendendo fazendo na verdade. Eu sou um editor de som, não sou um técnico, e venho da montagem. Acho que o que estou fazendo hoje, que se relaciona com isso que eu falei, é que com a maioria dos diretores com os quais eu trabalho já a algum tempo, eu trabalho em várias etapas do filme, desde o roteiro. Quando eu entro para fazer edição de som, eu entro muito na época do corte final, que é uma coisa que eu mais segui na vida, que é fechar filme, e acho que as pessoas de pós produção sabem muito de corte final. Mixador sabe muito de ritmo, sabe muito de corte. Hoje em dia eu trabalho com pessoas de imagem que me conhecem um pouco desse período. Então agora eu estou fazendo o filme do Felipe Barbosa, que é a terceira vez que estamos trabalhando juntos, e por uma circunstância de agenda eu fiquei com mês de janeiro vago, ele fez um primeiro corte do filme dele na França e quando chegou no Rio ficamos um mês fechando o corte de imagem. Nós apresentamos amanhã na França para o produtor francês. Teve um montador que fez o primeiro corte em dezembro, e em janeiro eu entrei. Então para mim som e montagem são coisas muito ligadas.

GF: Qual sua relação com os diretores em etapa de pré-produção?

WX: Normalmente isso não existe muito no geral, principalmente no Brasil, essa atenção com a pós-produção desde a pré. Mas com os diretores que eu já trabalhei, eu começo a entrar muito cedo nos projetos. Entro no roteiro, reuniões de pré-produção, como formador de equipe, quem fará a captação de som direto e etc. Filmes que estou ligado, participo de decupagem, muito pensando no som, na captação de som. Com o Felipe (Barbosa) eu fiz isso, com o Karim Ainouz já faço isso, enfim, com todos os diretores que eu já trabalho há mais tempo. Por exemplo, estou pela segunda fez trabalhando com uma jovem diretora (Julia Rezende) e como eu já conheço o roteiro, ela me mandou a cena final e me perguntou se teremos que dublar ou não porque se ela tiver que dublar, vai ter que mudar a montagem. Assim, ao invés de fazer a alteração lá na montagem, ela já pode ter esse tipo de conversa antes. Cada vez mais está acontecendo isso que em geral parte do diretor, não é uma lógica de produção em si. Eu acredito inclusive que tenho muito esse perfil, o que é importante, prestar atenção, o que é dramaturgia.

GF: As vezes para algum trabalho você indica alguma pessoa de som direto que você acredita ser interessante?

WX: Geralmente os diretores me perguntam. E também tem as lógicas dos filmes. Tem pessoas que se adaptam mais a um tipo de filme, mais a outro tipo de filme. São circunstâncias, ocasiões mais documentais, momentos mais ficcionais, pessoas com bagagens distintas. Eu não indico sempre a mesma pessoa, indico pessoas em função dos projetos. Mas acontece cada vez mais, assim como mixadores.

GF: Costuma indicar mixadores em etapa de pré produção?

WX: Às vezes em pré-produção, quando a coisa é bem organizada, mas geralmente não. Mas em geral eu sempre sugiro. Os diretores perguntam na verdade. Um pouco a forma como eu trabalho com os diretores, tem a função de formador de equipe.

GF: Nos filmes, você costuma assinar “edição de som”. Como você definiria o “desenho de som” ou simplesmente essa pessoa que pensa o som conceitualmente do início ao fim de um projeto ?

WX: Eu não estou muito afiado no debate das terminologias, até me perguntaram isso pouco tempo atrás. Tem gente que é super contra a história de “desenho de som” ou “edição de som”. Porque tem as línguas também. A minha história com crédito é da maneira francesa de chamar a edição de som que é “montagem som”. Tem “montagem imagem” e “montagem som”. Que para mim vai super bem, porque é antes de tudo montagem. Então na França sempre foi “montagem som”, vim para o Brasil e passei para “edição de som”, que se usava mais por aqui e acho que é como está marcado na maioria dos filmes que realizei. Eu comecei a fazer filmes em língua espanhola e o crédito ia como “diseño de sonido”, achei lindo. “Sound designer” nunca fui adepto porque sempre fui meio anti-americano. Acho que nunca fui creditado num filme brasileiro como “sound designer”, não é minha onda. Agora recentemente assinei “desenho de som” mas sem muita clareza do que cada um quer dizer. Mas de qualquer maneira, a minha concepção de som é totalmente de conceito, sou daqueles que conceitua tudo, que argumenta. As pessoas me perguntam, “a que nível você corta?”, eu não sei, é no ouvido, minha referência é mais de conceito mesmo.

GF: Você acredita que o espaço do set de filmagem é um espaço que pode ter uma identidade acústica que interesse à narrativa do filme? Como o som direto pode contribuir ao planejamento conceitual do desenho de som de um filme? A captação de som direto deve se concentrar somente nas vozes ou deve propor outras formas de encadeamentos sonoros?

WX: Depende do filme. Pode ser muito diferente. Tem a lógica do Straub que é da pureza do som e vai filmar na Toscana e se está passando um avião ele para de filmar. Ou não filma durante 2 horas. Mas a lógica dele é isso pois ele acredita no som direto. Acho que não tem fórmula, não tem certo e errado, acho que tem coerência de cada filme. Mas acho que influencia sim, se você está filmando num local que vai ser completamente pós-sincronizado, dublado, você tem que agir de uma maneira diferente. Um exemplo do que foi hoje, essa sequência final desse filme da Julia Rezende, que foi rodada em um cemitério e me liga o técnico de som completamente desesperado dizendo que a locação é horrível, porque é muito barulhenta, me mandou o som. Eu disse que não adianta me mandar o som sem mandar imagem, enfim. Montou-se a cena e me mandou hoje. Perguntando se era dublagem ou não dublagem. Porque a diretora disse que se ela tiver que dublar, ela montaria de forma diferente. Então isso é muito legal, quando você consegue ter esse nível de diálogo e participação. Acho que influencia no filme. Influencia a equipe. É claro que a lógica da filmagem enquanto captação de som direto tem muito a ver com dramaturgia e que tipo de registro sonoro se quer ter do elenco. Então isso é uma questão. E a outra questão é como cobrir o filme não com som direto mas com sons adicionais. O filme novo do Felipe Barbosa (Gabriel e a Montanha, com estréia na Semana da Crítica do 70º Festival de Cannes), por exemplo, um road-movie na África, que atravessa 7 países. Fizemos várias reuniões de pré-produção, pois não iriamos voltar lá, não teriamos dublagem dessas pessoas, então é como um documentário, é um filme de viagem com cada cena em um país distinto. Ou seja, temos que cobrir e captar os sons enquanto estivermos lá. É o que estava fazendo agora, pegando os boletins. Muito importante, boletim de som (risos)! Então cada filme é uma coisa. Me lembro que com o Central do Brasil (1997) com o Walter Salles, depois fiz o Abril Despedaçado (2001), que era um road-movie no sertão brasileiro. Já tínhamos feito Central do Brasil, que foi uma experiência muito feliz, então entrei já na pré, teve um bom estudo de som, consegui ter um 2º assistente na equipe de som direto que ficava nas locações enquanto a equipe ia para a próxima. Porque você não para uma equipe de 50 pessoas para gravar 10 minutos de som. Você pode lutar, mas não vai conseguir nunca. O assistente de direção nunca vai lhe dar esses 10 minutos. E se der 10 minutos não vai ter silêncio no set pois a equipe está preparando o próximo plano. Então no caso do Abril Despedaçado conseguimos que a equipe fosse embora e a cada final de locação abriam-se pistas de som e ficava um assistente um dia gravando os sons ambientes e efeitos isolados. Foi algo que eu planejei com o técnico de som e o diretor e etapa de pré. Mas para isso tem que ter organização. Várias vezes você pede e não acontece. Também o que acontece é que eles não conseguem garantir essa captação de sons extras durante o set e o técnico de som fica mais uma semana na locação para fazer essas captações. Geralmente quando chega no final das gravações, não tem mais dinheiro e essa semana é a primeira coisa a ser cortada no orçamento e não fazem.

GF: Como você pensa os ruídos de sala dentro do projeto de som de um filme?

WX: Eu sou fã de ruídos de sala! Eu aprendi a fazer ruído de sala na França que é um ruído de sala maravilhoso! Realmente é a minha escola. Um ruído de sala que é gravado em uma sala de cinema com várias possibilidades acústicas. Realmente um estúdio de gravação de sons, com cabine para você fazer um exterior sem reverberação, dez tipos de piso diferentes, quatro tipos de porta, tanque, bacia e o artista de foley chega com um caminhão que parece uma mudança de 15 malas e um assistente gravando num estúdio com uma mesa de mixagem com um perchmen (microfonista) e um mixador gravando esse som. É isso que eu fiz como estagiário: “pista, 1 passo do fulano, pista 2, passo do ciclano, pista 3, acessório tal, pista 4…”. Com pessoas talentosíssimas, com uma bagagem de sons incríveis e fazendo coisas incríveis. E eu uso muito isso. Você pega os meus filmes e tem muito, muito, muito foley. No Abismo Prateado (2011) do Karim Ainouz, está tudo no escuro, você só ouve os passos da mulher, parece que ela vai cair e é foley. É foley de direção de arte, de dramaturgia, então uso muito. Defendo muito a presença do foley nos filmes. Estou super feliz que vou fazer 2 filmes com foley francês este ano, faz tempo que não faço.

GF: Mas cada filme tem um projeto de foley distinto, não? Alguns projetos realizam gravações de foley em locação acusticamente semelhante a locação do filme…

WX: Sim, tem um conceito. E tem também o que eu chamo de ‘só som’, de gravar os sons durante as filmagens. De você parar e gravar uma porta específica, gravar um efeito específico, na locação exata, com a acústica exata, com material exato, enfim, que vai combinar com o som direto mas gravando no plano referente…

GF: Exatamente. Uma vontade de gravar ruídos de sala em locais com uma condição acústica que seja em si interessante para o desenho de som do filme.

WX: Eu faço muito isso. Por exemplo no Casa Grande (2014) do Felipe Barbosa, que a gente tinha a casa aqui no Rio de Janeiro, fomos gravar tudo depois, depois de já ter montado. Lá na casa onde eles rodaram o filme. Gravamos todas as portas, campainhas, alarme, alarme de dentro, alarme da cozinha, alarme do jardim. Fizemos um banco de efeitos específico para o filme. Então são os melhores efeitos possíveis para qualquer filme. Agora o que ajuda o foley em estúdio é o isolamento acústico. Alguns sons você não consegue gravar tão bem devido ao não isolamento acústico. A combinação de uma coisa com a outra

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Casa Grande (2013) de Fellipe Barbosa.

GF: Já ouvi você comentando informalmente o apreço que tem pelos sons ambientes. Esse material é gravado por você em etapa de pós produção ou isso é combinado de ser gerado durante as filmagens?

WX: Isso tem mudado muito. Normalmente o que eu costumo fazer, que eu gosto de fazer e que não estou conseguindo tanto hoje em dia, é produzir sons para a pós produção sob encomenda. Quer dizer, uma vez que o filme já tem um primeiro corte, eu costumo assistir com o diretor, fazer uma análise técnica, ouvir o que tem no som direto, ver o que foi feito durante a filmagem, sobretudo o que não foi feito durante a filmagem e depois, chamar o técnico de som do filme ou outro técnico de som que vá produzir em pós, ambientes e efeitos. É uma lógica que na verdade é muito francesa e ouso dizer que tem pouquíssimas pessoas de som direto no Brasil que tem de verdade o costume e a experiência de fazer, principalmente ambientes. Porque a lógica de escuta do ambiente é completamente distinta. É saber que o ambiente você precisa gravar durante um determinado tempo, tem certos sons que atrapalham o ambiente e que não funciona como ambiente por causa disso. Vindo para o Brasil, nos primeiros filmes que eu fiz quase todos eu fiz com um técnico belga que morava em São Paulo chamado Nicodème de Renesse que fez uns sons incríveis. Mas ele parou, não sobreviveu disso, ele é antropólogo hoje em dia.

GF: Você gosta de trabalhar com o próprio técnico de som do filme?

WX: Não necessariamente. Pois muitos deles não tem disponibilidade. Não tenho feito, primeiro porque não tem orçamento, segundo porque não tem pessoas tão especializadas nisso, é sempre difícil, mas eu peço sempre. Sempre que tem locações muito específicas eu peço para fazer. Que seja o técnico de som do filme, seja algum outro. Podendo ser durante a filmagem, melhor. Quando não pode, estar previsto de fazer depois.

GF: A forma ideal é essa, no momento que o filme está sendo realizado, ter alguém já captando esses sons?

WX: Sim, nós faziamos isso. Céu de Suely (2006) do Karim Ainouz, filmagem no Ceará, em Iguatu, vai o Nicodème de Renesse para o Ceará numa semana, com uma lista preparada de sons e grava sons. Mil exemplos. Fizemos muito isso também no Madame Satã (2002 – Karim Ainouz), filme de época super importante o som, som de época, filmagem no Rio de Janeiro numa bagunça de sons, tendo que reconstruir tudo, muitos sons de voz. Mas tínhamos a lógica para isso, segunda feira de noite fechou um bar em Santa Teresa, 40 figurantes e vamos fazer o filme inteiro. Na rua, dentro, tudo. Isso é o ideal. 

 

  1. PARCERIA COM KARIM AINOUZ

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Céu de Suely (2006) de Karim Ainouz.

GF: Acredito que o processo de realização do Céu de Suely (2006) está embricado no processo do Viajo porque preciso, volto porque te amo (1999 – 2009), que começou a ser realizado em 1999 e foi finalizado em 2009. Acredito que exista um ambiente sonoro que extravasa um pouco os filmes. Como você fez todos os longas do Karim, gostaria que comentasse um pouco sobre essa parceria.

WX: Sim! O Karim é um super parceiro, um grande amigo e fico muito feliz com nossa parceria. Primeiro com o Karim é o encontro com o diretor e acho que ele é um desses diretores que primeiro forma uma familia, não uma equipe. Se você pegar os créditos de Madame Satã (2001) até Praia do Futuro (2014), você vai ver que muitos nomes seguiram Karim nesses filmes. A Isabela Monteiro de Castro, montadora, Marcos Pedroso, diretor de arte, e eu que fiz todos os filmes. Acho que a Isabela não fez um ou outro porque ela foi morar em Paris, mas enfim, fez o Praia… também. Acho que o Karim é um desses diretores que faz com que você vá além do que você sabe fazer. Te dá muitas informações para você realmente ter uma base muito boa de trabalho, te dá liberdade total de propor coisas, ele tem liberdade total de dizer se gosta ou se não gosta. E normalmente ele é um desses diretores que sempre te força a ir além do que você já fez. Nisso eu posso falar também que se você pegar os 5 longas do Karim, são filmes totalmente diferentes. Em todos eles eu acho que tem coisas muito interessantes em todos os sentidos, claro que uns gosto mais, outros menos, mas todos eles têm uma importância muito grande no som. É um aprendizado e uma colaboração que tem um vocabulário muito grande. Tem um outro filme do Karim, que não é um longa, que é um curta-metragem chamado Domingo (2014) e que tem um trabalho de som bem bacana, porque já é na intersexão com artes plásticas. Então com o Karim tem essa questão de já estar nos projetos desde o início. Mesmo com o Madame Satã (2001), foi engraçado, porque eu conheci o Karim no dia que ele conheceu o Walter Salles, porque o Karim veio nos visitar na mixagem do Central do Brasil (1997). Nós nos conhecemos 4 anos antes dele finalizar o Madame Satã (2001), então trabalhamos na preparação, nós seguimos. Desde o primeiro filme nós já nos conhecíamos. Já tinha essa ideia da pós-produção na França, depois o Walter Salles virou o o co-produtor, nós montamos aqui mas mixamos na França, então já tinha um trabalho de colaboração que a parte do som seria supervisionada e orientada e que eu participaria desde o início porque a finalização seria na França. Então acho que tem isso, acho que tem um diálogo grande da dramaturgia dele e dele ser cineasta que não controla mas ao contrário, empurra a gente a fazer coisas a criar e cada filme foi diferente. O primeiro foi Madame Satã (2001).

GF: Entre o Céu de Suely e Viajo porque preciso, volto porque te amo qual deles você entrou primeiro?

WX: Foi o Viajo… Foi uma delícia porque quando eu fiz o Viajo…, eu já tinha todos os sons do sertão, todos os sons do Céu de Suely. Como já tinha também encontrado o Marcelo Gomes lá no Madame Satã, o Marcelo é co-roteirista do filme, nós ficamos amigos lá naquela época… Eu acabei não fazendo o Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), a intenção era que eu fizesse, mas eu estava na França na época. Foi o Beto Ferraz quem fez a edição de som, mas eu participei. Mandei sons, conversamos, fui um dia na mixagem com o Armandinho (Armando Torres Jr) lá em São Paulo e depois fiz o Viajo… O Viajo… foi depois do Céu de Suely e depois do Cinema, aspirinas

GF: E os sons ambientes e efeitos no caso do Céu de Suely foram coisas oriundos do som direto?

WX: Foi nessa época em que a gente ainda tinha o direito de mandar uma pessoas para fazer isso. Nicodème de Renesse foi para Iguatu (CE) gravar uma série de sons. Isso em etapa de pós-produção. Todos os caminhões e carros e motos do Viajo…, já tinham sido encomendado pelo Ceu de Suely, e assim já estavam na manga.

 

VIajo porque preciso volto porque te amo 

Viajo porque preciso volto porque te amo (1999-2000) de Karim Ainouz e Marcelo Gomes.

 

GF: Mas isso antes de você saber que o Viajo… ia montar?

WX: Eu ouço falar do Viajo… desde que conheço o Karim (risos), desde o Madame Satã na verdade. Porque é um filme que ele foi fazendo… Ele virou o Viajo… quando eles sentaram para escrever o roteiro, mas antes disso ele tinha sido premiado para ser um filme do Itaú Cultural, que foi lançado, de 26 minutos que chamava Carrancas de acrílico azul piscina depois virou um outro formato de alguma outra coisa que eu não lembro o nome, enquanto isso a Isabela Monteiro de Castro montando esses tempos todos, sempre foi o filme que todo mundo falava que era nosso filme da vida, então volta e meia ele falava, mostrava umas imagens, “ó pensa num som para isso” e assim foi fazendo, fazendo. Até que um dia o Marcelo (Gomes) sentou e fez um esboço de um roteiro, e aí virou um longa. Mas antes ele teve outros projetos, como ele teves vários filmes e vários objetos, depois eles fizeram aquela exposição do Carnaval que tinham um pouco a ver com as filmagens super-8 que eles tinham no Viajo…, então é toda uma pesquisa. Como já tinha tido o Céu de Suely, Madame Satã ou pouco o Aspirinas, depois eu fiz o Era Uma Vez Eu Verônica (2012 – Marcelo Gomes), mas isso foi depois. E criamos essa família que é muito unida, com o produtor de Recife, o João Vieira Jr. que é meu produtor favorito no Brasil…

GF: E esse projeto sonoro que está presente não somente no Céu de Suely mas em muitos outros filmes que você fez, de escutar muito para além do que é enquadrado… Abrir os ambientes, escutar muita moto, feira… São coisas que você já tinha pensado no desenho de som que você queria para este filme?

WX: Eu acho que aí você toca numa questão que é muito definidora do meu trabalho e vem da minha experiência. Isso que você fala já está esboçado no Quarto de Vanda (2000, Pedro Costa) e já está esboçado no Madame Satã. Tem duas coisas que eu me orgulho e que tem a ver com a crítica e com meu interesse na escrita. Num determinado dia me enviam a crítica do No Quarto de Vanda na Cahiers du Cinèma e numa determinada passagem dizia ‘la band son est extraordinaire’. Começa a falar dos sons do filme. E aí tem outro filme que não é nem tão bom, de outro estilo mas que também tem uma crítica na Cahiers que é o Lumumba (2000) do Raoul Pech e eles começam a descrever exatamente essa construção do fora de campo que é uma coisa que eu defendo muito, que vem desde o Bresson. E a mesma coisa, filme muito diferente, na África mas se detecta isso. Aí por exemplo, vem a crítica de lançamento do DVD do Madame Satã no Liberation, que é um jornal que eu adoro. E na crítica do DVD diz ‘pego o filme para ver a meia-noite, que é o horário que tenho para assistir e aí começo a ver e nossa, a criança do vizinho ta chorando, nossa o vizinho de baixo está martelando, não! É a banda som que está construindo isso’. Para mim isso é uma questão de dramaturgia mesmo, de saber quando e querer muito e adorar fazer isso, de fazer com que o espectador seja transposto ao mundo no qual ele está envolvido no filme, da relação física, da tela, a relação afetiva do espectador naquilo, na maneira como pode existir essa imersão. Aí podem existir filmes que pedem isso e filmes que pedem o inverso, que aí acho que é o caso do Desde Allá (2015 de Lorenzo Vigas), que eu adoro. É o exemplo exato do sim e do não. Acho que entra muito nessa formação de pensar os ambientes como definição do espaço sonoro e de isso ser muito ligado a toda minha trajetória pela edição de imagem, valor de plano, decupagem, como decupar o som dentro de uma sequência, não é um ambiente só numa sequência inteira. Então é toda essa interação que vem muito pela montagem e pela dramaturgia. E aí eu acho que tem essa experiência sensorial, a importância do som como experiência física, afetiva, hipnótica, não mensurável, não controlável… Aí é realmente onde mais eu tenho prazer no trabalho de concepção de som. É nessa relação com o espectador. Por isso que me defino mais como um editor de ambientes do que um editor de efeitos. Eu tenho mais intuição e prazer de desenhar, esculpir e definir um ambiente do que fazer um filme de tiros, carros, ação, de efeitos. O que eu prefiro fazer, tenho mais prazer em fazer, me interessa mais em me perder e explorar. Na verdade todos esses filmes tem a ver um pouco com isso na verdade. São filmes onde a locação é um personagem, não são só filmes de diálogo, são filmes onde a experiência da locação onde se passa a história é um personagem grande, interfere na história, interfere na personalidade das personagens. Assim é em Madame Satã, assim é em Iguatu (locação de Céu de Suely) assim é em Viajo porque preciso… que é um dos filmes que tenho mais carinho, pela liberdade que ele teve de criação. Tem no Quarto de Vanda essa experiência incrível de espaço.

GF: O Viajo… é sintomático neste sentido pois, salvo engano, foi todo feito em pós produção certo? Não tem som direto? Tem a entrevista da Paty que fala sobre a ‘vida lazer’…

WX: Tem muito pouco na verdade… Aquele filme tinha uma parte sonora que eram as entrevistas. Mas então virou um filme sem entrevistas. O que tem de som direto é a Paty, que é a única entrevista que ficou no filme, e tem um senhor que canta no final, mas que cortamos e vira uma outra música depois. Tem alguns sons da filmagem, poucos. Em Juazeiro tem alguns sons de caminhões. Mas a grosso modo, todo ele foi feito em pós. Tanto a narração quanto todos os carros e todos os demais efeitos.

GF: A narração foi algo que você conceituou junto com o Karim?

WX: A textura da voz do Irandhir Santos foi a última etapa. Na verdade tem três etapas. A primeira é a escrita e a montagem, que tem a ver com a edição de imagem, para montar a voz, que na montagem iniciou a Isabela Monteiro de Castro mas terminou a Karen Harley. A espinha dorsal era a voz off que foi escrita, re-escrita e re-escrita porque uma coisa é escrever e outra é testar na imagem. Foram três gravações, que foi onde eu conheci o Irandhir, uma pessoa incrível. Como era um filme solto e sem dinheiro, todo mundo foi meio produtor do filme, ia fazendo, até por isso que demorou tanto tempo. Parava, mexia pesquisava. Foi muito interessante, porque estávamos trabalhando aqui em casa, e fomos conceituando a textura dessa voz. Como ia ser essa voz. Tinha a coisa do gravador, ai tira o gravador porque vai ser realista e chato, não queríamos isso. Queríamos ter uma instância narrativa mais livre. No final das contas acreditamos que um pouco da textura do gravador faria com que o Irandhir falasse e ouvisse sua própria voz. Depois teve a lógica de encontrar um único registro que era a entrevista da Paty, de botar um som muito parecido com aquele tipo de registro que tinha aquela fritura mesmo de de fita, aquele chiado. Isso tudo foi muito defendido, revisto e conceituado.

GF: Sobre o Céu de Suely, tem uma coisa que eu gosto muito que é como a música diegética influencia as personagens e cria níveis de afetividade nelas e entre elas. Em vários momentos a Hermila canta, por exemplo. Como essa parte musical, que é oriunda da diegese, é conceituada? Você quem faz?

WX: Com o Karim, muito. Isso acho que já é uma questão de aprofundar, de explorar mesmo desde a escrita. Isso se inicia lá em Madame Satã. O Madame Satã é um filme musical, nós fizemos uma pesquisa, chamei meu amigo Eduardo Granja Coutinho grande especialista em música dos anos 1930, para indicar quais seriam essas músicas diegéticas. Você está na rua e vê uma bandinha cantando lá longe, é um Noel Rosa que a gente pesquisou, que está interagindo, gravamos na rua em pós. Acho que o Karim é um dos diretores que tenho uma experiência mais rica dessa questão da música. No Céu de Suely isso foi muito explorado para definir um personagem. Ja abrimos com Tudo que eu sei, interpretação da Diana do original Everything I Own (Bread). Essa música é do lado cearense do Karim, acredito que foi ele quem escolheu. Nós sempre escolhemos juntos a que vinga mas tinha essa música em mente para definir a personagem, música romântica, que acho que é o que define mais ela. Mas aquele impacto de começar o filme sem som nenhum e só a voz off e vir a música em primeiro plano. Já que é isso, vamos destacar. O Karim aceita esses testes, essas ousadias, isso é muito legal de trabalhar com ele, veste a camisa mesmo. A coisa que é muito curiosa é que apesar do Céu de Suely ter sido feito antes do Viajo… ser finalizado, a pesquisa do Viajo… foi a base para fazer o Céu… Então uma coisa meio que se mescla na outra, por isso a presença de tanta música diegética no Viajo… Que está relacionado a questão da viagem, das paradas, dos forrós de estrada, de fazer a personagem cantar, de fazer a personagem vivenciar a música, então isso é super explorado. O que foi muito complicado mas já é uma outra parte, é de definir o que não era música diegética, foi bem difícil para gente. Pois nada colava tão bem como a música diegética, tudo descolava muito. Nos tivemos que nos distanciar muito da referência ou de trilha convecional ou do que se faz muito de trilha para filmes. Pesquisando muito nós caímos num grupo alemão de Hamburgo (Lawrence – Somedy Told Me) que é a música final do filme que nunca conseguimos substituir com trilha. Foram pelo menos quatro trilheiros para tentar compor alguma coisa com referência nessa música e ninguém fez nada que nos convencesse. Isso foi bem complicado. Se você continuar a filmografia do Karim, no filme seguinte dele Abismo Prateado (2011) que é baseado numa música do Chico Buarque (Olhos nos Olhos), filme que também tem música diegética, música da boate enfim, também tem essa importância. O Praia do Futuro (2014) já é diferente porque já foi música original, pouca música diegética.

 

Continua…

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