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Oct 9 2017

Entrevista com o Sound Designer Waldir Xavier – Parte 2

“Acho que entra muito nessa formação de pensar os ambientes como definição do espaço sonoro e de isso ser muito ligado a toda minha trajetória pela edição de imagem, valor de plano, decupagem, como decupar o som dentro de uma sequência, não é um ambiente só numa sequência inteira. Então é toda essa interação que vem muito pela montagem e pela dramaturgia.”

Waldir Xavier 

  1. PROCESSO DE REALIZAÇÃO – NO QUARTO DE VANDA

foto 1

No quarto de Vanda (2000) de Pedro Costa.

 

Guilherme Farkas: Comente um pouco sobre o processo do No Quarto de Vanda (2000) do Pedro Costa. Como você já adiantou na crítica da Cahiers du Cinema que foi abordado o som, neste filme o som tem um papel super importante. Cria espaço, cria angústia, cria conflito. Se quiser falar um pouco da sua relação com o Pedro Costa

Waldir Xavier: O No Quarto de Vanda é o filme mais interessante que eu já fiz na vida. São várias etapas. A primeira etapa é o fascínio pelo diretor. Me lembro que eu fui a uma pré-estréia do Ossos (1997) em que o Pedro estava presente e apresentou o filme. Entre outras coisas ele é brilhante, inteligentíssimo. Uma pessoa que consegue conectar fala e pensamento de uma forma muito inteligente. Então além de estar impressionado com o cinema dele, estava impressionado com o diretor. Segundo ponto: acho que os filmes do Pedro sempre foram tão enigmáticos para mim, desses cineastas que eu tenho que ver os filmes várias vezes para ver se entendo, não entendo, o que eu entendo, o que eu sinto… Mas sempre hipnotizado, eu tinha vontade de trabalhar num filme de um diretor assim porque é a única maneira de entrar mais profundamente no processo criativo. Então tinha essa segunda vontade de conhecer de perto o pensamento, entender esse raciocínio. Então fazer o No Quarto de Vanda me permitiu esses dois fatores ao mesmo tempo. Pude acompanhar o processo. Cheguei em Lisboa, quem estava montando a imagem, que foi inclusive quem me apresentou o Pedro, é uma amiga montadora francesa, a Dominique Auvray, montadora dos filmes da Marguerite Duras, Claire Denis e etc… Eu cheguei no No Quarto de Vanda no processo de montagem, que foi um processo longo obviamente. Foram 2 anos de filmagem, depois da montagem iniciada o Pedro fazia novos planos… Então foi muito interessante esse… É um tipo de filme que você não faz… É que nem o Viajo…, você não faz…. “ahn, quanto tempo você faz o Viajo…?” Foram anos! Então o No Quarto de Vanda foram meses intensos, de entrar, entender, entender o processo, entender a dramaturgia, de produzir sons. Muitos dos sons, um pouco parecido com o Viajo…, fora as cenas que eram de interior, que a câmera estava muito próximo, que ele filmou com a Mini DV e que tinha um microfone em cima, todo o resto foi construído, foi refeito. Então teve esse exercício muito específico de analisar cada cena, fazer um desenho de som da cena em função da situação dramatúrgica do filme. De escutar coisas muito, muito fortes sendo ditas e eu dizer para o Pedro: “vamos colocar do lado uma casa sendo demolida?”, e ele falou “é isso, guerra civil”. Depois, tem uma coisa que é muito legal que tem com o Karim, com alguns diretores, que eles não tem medo de som, eles gostam de som, puxam o som, provocam. Depois tira-se muita coisa também. Seria algo entre querer mostrar e esconder ao mesmo tempo, essa dosagem é muito interessante. Tem outro fator que é um estimulador e um agravante, que cada filme tem uma história de como se faz, por ser um projeto muito longo e o fato do Pedro não ter um produtor, ser um projeto independente, a gente trabalhou em péssimas condições, e tinha muito a ver com o filme ao mesmo tempo. Me lembro que esse filme, pelo menos os primeiros meses eu estava trabalhando no Hotel do Paulo Rocha, que é um diretor português que foi o último produtor do Glauber Rocha, no hotel onde o Glauber passou muito do tempo doente, antes de ir a Sintra. Um hotel que a mãe do Paulo Rocha ainda tinha, deu um quarto para gente e colocou um Pro Tools. Durante o dia, Paulo montava o filme dele, estava fazendo seu último filme, e eu trabalhava de madrugada. Eu me lembro que chegava no hotel umas 22h e ficava até de manhã. Num Pro Tools que era do arco da velha. Me lembro que o assistente de montagem do filme do Paulo me falava “olha, o computador tem tão pouca memória que não ta dando para fazer fade“. Então eu não fazia fade. Foi quando aprendi a montar som sem usar fade. Eu de madrugada sozinho naquele hotel, montando a Vanda no crack. Então era uma vivência. Vinha uma concentração, um isolamento e uma transposição aquele lugar que me angustiou muito. Me lembro de noites que eu saía de lá super angustiado e nessa fase o Pedro estava na imagem. Estava começando a fazer…

GF: Montagem de som e imagem simultaneamente?

WX: Sim. O Pedro ainda estava filmando algumas coisas. Mais tarde, quando estávamos mais avançados na montagem, passamos a trabalhar de dia, Paulo já tinha termiando o filme dele. Teve esse mergulho no universo do Pedro e da questão de poder ver e rever muitas vezes e que acho que é preciso mesmo, que é desses cineastas que é preciso ver muitas vezes. Como o Tarkovski, tem que ver muitas vezes, não estou comparando, só para entender… Foi muito prazeroso. E esses filmes de mergulho me interessam muito. E o Pedro é uma pessoa, que no convívio público é muito extrovertida e fala muito bem, mas na intimidade ele é muito angustiado. Me lembro que tinha perguntas que o Pedro não respondia, não porque ele não quisesse mas porque ele não sabia, para responder tinha que pensar muito. Foi muito complexo esse trabalho todo, tivemos que reconstruir o mundo.

GF: Quantos meses durou a edição de som?

WX: Eu cheguei em Lisboa em janeiro e mixamos em julho… O mais ilógico e complexo de tudo foi que acabamos indo mixar esse filme em Hamburgo (Alemanha) num universo completamente diferente. Lembro de chegar no estúdio, que na época tinha uma das melhores mesas de mixagem e estarmos reconstruindo o universo de Fontainhas num bairro super rico e moderno de Hamburgo, um contraste muito grande. E esse filme é meio fora do tempo, fora de referência. Tendo passado esse processo todo, essa primeira etapa em Lisboa, que é uma cidade que eu adoro pelo cinema do Pedro pelo cinema do João Cesar Monteiro, Manuel de Oliveira, João Botelho, João Pedro Rodrigues e etc. Acho que o Vanda talvez seja o filme desses todos que vai mais fundo nessa questão da transposição, pelo fato de serem casas sem paredes, que nunca sabe em que espaço se está, de ter muita interação com o exterior, do Pedro ser um cineasta bressoniano puríssimo, com essa relação do som dora do quadro, querendo explorar muito isso. Tem um livro que ele fala sobre os sons do Quarto de Vanda 

 

  1. PROCESSO DE REALIZAÇÃO – DESDE ALLÁ

 

Desde allá

Desde allá (2015) de Lorenzo Vigas

 

GF: Gostaria que você comentasse um pouco o processo de realização do filme Desde Allá (2014) do Lorenzo Vigas.

WX: Sobre processo, o importante é como os filmes chegam. O filme chegou através da Isabela Monteiro de Castro que é a montadora. Ela estava montando com o Lorenzo há muitos meses e volta e meia ela falava, “Lorenzo, esse filme é para o Waldir, Lorenzo esse filme é para o Waldir“. No México tem um bam-bam-bam do som que é o Martín Hernández, que foi nomeado ao Oscar, que é o montador do Alejandro Iñaritú, fez o Babel (2006), que o Lorenzo escreveu inclusive, então era para ele o filme. Mas a Isabela falava que não, que o filme seria para mim. Uma bela noite eles estão jantando na Cidade do México e Lorenzo e a produtora estão idolatrando o No Quarto de Vanda… Eu só fiz o Desde Allá por causa do No Quarto de Vanda. Então estava Lorenzo e a produtora falando do som do No Quarto de Vanda, da interação de interior e exterior, que achava que no filme dele tinha que ter isso, que quando chega no ambiente do jovem e etc. E o exemplo maior que eles tem é o No Quarto de Vanda, como aquilo interage, que não da para saber se é verdade ou não. A Isabela então para o jantar e diz “vocês estão falando de qual filme?”, eles respondem que é sobre o No Quarto de Vanda, e Isabela diz “esse filme é som do Waldir!”. No dia seguinte o Lorenzo me liga. Eles me mandaram um corte, assisti. No outro dia teve um skype nesse lugar aqui que estou sentado. Da primeira vez que vi já fiquei chapado com o filme, muito animado com as possibilidades do som. Cada vez mais tenho vontade de fazer filmes que eu possa contribuir de verdade, onde eu acho que tem espaço para isso. Esse foi um filme que eu corri atrás por causa disso. Acho que é assim que vamos definindo o percurso através do que fazemos. Esse tipo de som que eu gosto de fazer, que me interessa: como chegam os sons no cinema? Pensar nisso através da dramaturgia. De entender o filme, de propor uma linguagem para o filme. A primeira grande pergunta do Lorenzo, quando ele estava chegando nesse corte já apresentável, era o que fazer com a música, como lidar com a música. E nesse caso, eu que adoro música, falei que nesse filme é sem música. Ele perguntou se eu tinha certeza e eu confirmei. O Lorenzo tinha vontade mas não tinha certeza. Música diegética só na sequência do aniversário de 15 anos, daí colocamos várias. Isso foi o que começou a nos conectar. E outra questão é essa, de acentuar esses dois mundos, do Sr. e o do jovem. Esse é o primeiro filme do Lorenzo mas já depois de ter feito várias coisas, já é menos ousado que Karim por exemplo. É mais difícil de lidar, na ideia é tranquilo mas na prática é mais difícil. Ele é muito detalhista e às vezes assim se perde o conceito e a ideia principal do filme. E isso foi algo que defendi até a mixagem. Ele me perguntava “você tem certeza que é sem música nenhuma?” e eu dizia que sim, que era sem nada. Ele dizia, “você não acha que está muito acentuado os universos?” e eu dizia, “está muito mas é muito mesmo!”. Aí ele baixava, aí aumentávos de novo. Depois com algumas ideias, ideias de como desenvolver esse contraste desse ambiente super silencioso, como pensar esse nada-sonoro. Porque não é nada-nada, é nada onde algumas coisas são acentuadas, tem que desenvolver o nada. Uma cena de elevador que o Sr. encontra seu pai, o elevador sobe, o pai sai e quando o elevador desce, e de uma maneira não naturalista, o som começa a se intensificar e corte seco. É um filme de rupturas também, o final do filme, ruptura. E no final também, ele perguntava se era nada e eu afirmava: nada! No último plano tem um monte de barulho, efeito de sirene, corte para preto e acaba o filme. Vazio, silêncio, morte. São cineastas que vão em linguagem, que são ousados. Que fazem a conexão da linguagem do filme com experimentos de narrativa, técnica e estilística. Aí é Godard, desde o início, que é meu espelho desde sempre.

GF: Nesse filme os sons ambientes chamam muito a atenção. Me parece existir aqui uma pesquisa bastante focada nesse sentido. Você tem uma pesquisa especial neste tema, algo que se desdobra para além dos filmes? Você cultiva um banco de ambientes próprio?

WX: Esse é o meu tesouro! Sempre tenho que estar organizando. Isso vou até inciar e pensar mais seriamente como um projeto. Na verdade todos os sons produzidos nos filmes, que eu chamo de sons originais, eu guardo no meu arquivo, com muito respeito. Não uso aleatoriamente os sons de um filme no outro, inclusive tem sons de certos filmes que nunca serão usados em outros. Mas em termos de ambiente você pode fazer isso, acho eu. Efeitos já é mais complicado. E eu sou apaixonado por som de vozes e ao mesmo tempo sou bastante exigente de ter sons autênticos, porque eu adoro línguas, entendo a diferença do português para o espanhol, para o inglês, para o espanhol da Venezuela, espanhol da Espanha, espanhol do México, do português de Portugal, e o que tem de comum e específico de cada local. E aí o que é mais importante é a locação do que o fato. Acho que ambiências reconhecíveis são de um filme só, mas de textura elas são muito migráveis. Na verdade mais do que a língua, os ambientes se parecem. Eu tenho um projeto de instalação sonora que eu gostaria muito de fazer que é misturar bairros populares, por exemplo, Fontainhas (Portugal), Lapa – (Brasil) e Rod El-Farag (Egito) que é um bairo periférico do Cairo. Seria uma brincadeira de como algumas falas vão nas outras e você parece que está no mesmo lugar, como uma combina com a outra, que tipos de elementos, as crianças, as músicas, o tipo de carro, o tipo de moto. Então tem esse arquivo mas que na verdade a minha memória sobre ele são os filmes e seus contextos. A minha memória dos sons são as imagens. Eu criei uma nomenclatura, que foi mudando com o passar do tempo, foi mudando com o passar das máquinas, que não está totalmente homogeneizado, pois o material de arquivo é muito grande, os formatos vão mudando. Estava com sons que eram em .sd2 e teve que passar para .wav 16bits e depois .wav 24bits, então a medida que eu vou avançando, vou resgatando alguns sons. Acredito que é um grande projeto na verdade, de organização deste arquivo que acho que só eu me entendo nele porque vem da memória dos filmes. Mas cada vez estão mais organizados.

GF: No caso do Desde Allá houve produção de ambientes e efeitos?

WX: Sim. Não tinha nada de Venezuela, tinham coisas muito específicas, planos muito próximos, teve muito som gravado. Dois técnicos de som venezuelanos em Caracas, com listas de som. E neste filme eu fui firme, falei para o Lorenzo da necessidade dessas gravações. Acredito que se eles não tivessem aceitado, nem teria feito o filme. Uma coisa é você em um plano colocar um som de sirene ao longe. Outra coisa é você decupar todos esses efeitos e ambientes como é o caso desse filme. Acredito que o grande detalhe e beleza de um filme, nesse sentido, são os sons originais.

GF: Existe uma pontuação bastante precisa de determinados efeitos sobre os ambientes. Como foi trabalhar com o Rodrigo Sacic?

WX: O Rodrigo veio basicamente para fazer os efeitos de carros e motos no bairro popular. Na verdade o Rodrigo fez a decupagem dos sons da Venezuela, digitalização, nomeação e catalogação. Depois ele fez a edição de efeitos que era basicamente efeitos de carros nas ruas, mas a partir do que fora gravado na Venezuela. E pass-by (efeito de carro passando) ele pegou dos arquivos que ele tem. Agora dos veículos específicos tentávamos tirar do que fora gravado lá. Eu geralmente não trabalho com tantas pistas, não chego muito aberto para a mixagem, minha maneira de trabalhar é tão conceituada e tão discutida com o diretor, que podem ter mudanças na mixagem mas não mudanças de conceito.

 

  1. PROCESSOS DE MIXAGEM

 

GF: Em algumas ocasiões você comenta sobre o mixador Dominique Hennequin. Qual sua relação com ele?

WX: O Dominique é o mixador mais famoso da França dos anos 1980 e 1990, ganhou o oscar francês, o César, em 6 ocasiões. Fez muitos filmes grandes tanto independetes como comerciais. Na verdade eu decidi seguir no som quando eu trabalhei com o Dominique na ocasião da mixagem de um filme do diretor egípicio Youssef Chahine. Eu vi ali um nível de discussão de dramaturgia na mixagem, uma coisa que eu não tinha visto nem na sala de montagem na verdade. Isso me fez muito seguir o Dominique que é um mestre para mim. Com ele eu fiz os filmes do Chahine todos, foram uns 3 ou 4, O Imigrante (1994), O Destino (1997), O Outro (1999), 11’09″01 – 11 Perspectivas (2002) foram 5 ou 6 filmes egípcios e depois eu chamei ele para fazer o Madame Satã. O Dominique tem mil referências mas em termos de referência de voz acho que ele é realmente… Nada, ninguém e nunca quanto o Dominique conseguiu trabalhar a voz em questão de timbre e dramaturgia. De falar de uma sequência, de discutir uma sequência com paixão, discutir no sentido de debate mesmo, interagindo com diretor. Acredito que é alguém que transcendia a técnica sendo o melhor técnico com quem eu já trabalhei. E trazendo essa dimensão do som, além da técnica como um resultado mesmo da alma do filme. Foi uma super referência para mim.

GF: Você o conheceu quando estava na França?

WX: Sim. Na verdade já conhecia ele porque era o mixador mais famoso da França. Me lembro perfeitamente quando conheci Dominique Hannequin. Estava trabalhando no Boulogne-Billancourt, lugar onde fiz meu primeiro estágio. Era um estúdio que tinha um set de filmagem, que eles estavam filmando Le Brasier (1991) do Éric Barbier, e fazendo uma dublagem com 50 operários de carvão do norte da França. Dominique estava lá no meio, um loiro elegante. Depois eu trabalhei com ele pela primeira vez no L’Imigrer neste filme egípcio, foi em 1994, era assistente de imagem. E o Dominique era mixador. Depois fizemos vários filmes juntos. De brasileiro ele fez só o Madame Satã.

GF: No Brasil você fez alguns filmes, entre outros, mixados pelo Ricardo Cutz.

WX: Sim, o Ricardo é muito bom nessa parte de arriscar. Na verdade tem uma coisa que eu falo hoje para os diretores, que como na França você mixa com várias pessoas e depois lá eu fiquei especializado em fazer as co-produções, então viajava muito, mixei em muitos países, eu me adapto muito com os mixadores. Então se o filme está bem entendido, bem conceituado e bem preparado, não vai dar errado, parto deste princípio. Se der errado, o mixador não entendeu o que já está ali acordado. Foram raríssimos casos de experiências desagradáveis e não satisfeitas de mixagem por causa disso. Claro que tem pessoas que se adaptam mais a um certo tipo de filme, que tem a bagagem de tamanhos de filmes, de tamanhos de pistas. Mas o que é mais importante, no final das contas, quando você tem uma base técnica para fazer o trabalho, é o entendimento entre as pessoas. Para ver se o diretor vai se entender com o mixador, se o mixador vai conseguir entender o universo do diretor, se vai conseguir dialogar neste universo e o mais importante se vai conseguir propor coisas. Se não, não fica uma troca, fica um serviço, o que não acho interessante.

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