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Aug 4 2017

O Som Ensimesmado: uma entrevista com O Grivo

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Formado por Nelson Soares e Marcos Moreira, O Grivo é um duo de músicos-sound designers cujo trabalho tem desdobramentos nas mais diferentes áreas, do cinema as artes plásticas. Essa multiplicidade de atuação, no entanto, não significa dispersão, muito pelo contrário. Todos esses diferentes elementos parecem se articular de maneira equilibrada no trabalho da dupla, marcado por um rigor interno muito grande e, ao mesmo tempo, muito simples. A relação entre o som e os delicados artefatos produzidos pelo O Grivo nos leva a uma experiência concreta da música: é como se pudéssemos tocá-la, percorrê-la, até mesmo ignorá-la momentaneamente para, em seguida, sermos novamente capturados por ela. Parecemos estar diante do que um filósofo zen chamaria de kono-mama ou sono-mama, palavra pela qual se entende que o significado de alguma coisa não é algo definido por algum tipo de articulação intelectual exterior a ela: “o significado está em ser apenas, transformar-se apenas, viver apenas.”

Rodrigo Maia Sacic: O trabalho de vocês tem inúmeras ramificações e me interessa saber como é que elas surgiram ao longo da carreira de vocês e como essas diferentes vertentes se inter-relacionam. Tudo bem se a gente começar essa entrevista esboçando um percurso cronológico?

Nelson- Claro, problema algum. A gente começou a dupla em 1990. Nessa época, a gente só tocava mesmo. Eu sou baterista. O Canário (Marcos) tocava guitarra elétrica nessa época. A gente usava um gravador também, onde a gente gravava umas bases e se apresentava assim. Poucos anos depois, a gente começou a construir umas traquitanas que produziam sons. Mas era uma coisa bem incipiente ainda, era tudo meio ready made

RMS: Essas traquitanas eram mecânicas ou eletrônicas?

Nelsion- Eram mecânicas.

Marcos- Na verdade,  essas bases que a gente gravava eram muitas vezes objetos que a gente manipulava pra tirar sons deles. A gente primeiro levou esses objetos que a gente usava pro palco e começou a criar também essas engenhocas motorizadas, que nessa época ainda eram bem primitivas. O motor fazia mais barulho do que a própria engenhoca.

Nelson- E eu lembro que essas máquinas e objetos eram gigantes mesmo, era muita coisa no palco.

RMS: E a aproximação com o cinema?

Nelson- A primeira coisa que a gente fez foi um filme da Patrícia Moran chamado Adeus, América (1996). Um pouquinho depois disso a gente fez o primeiro Cine-Olho, que era um projeto da UFMG.  Nesse projeto a gente fazia um acompanhamento musical de vários filmes mudos ao vivo, usando instrumentos convencionais, mas também já várias bugigangas que a gente vinha criando. Foi a primeira experiência com projeção de imagens numa apresentação nossa. E os filmes eram maravilhosos: René Clair, Chaplin… A gente gostou tanto de fazer isso que até hoje a gente continua.

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RMS: E essas apresentações eram pura improvisação da parte de vocês?

Marcos- Não, tem uma pesquisa radical antes. Tem improvisação também, claro, mas nem tanto.

Nelson-  E variava muito de filme pra filme também.  Por exemplo, aquele filme do Duchamp, o Anémic CInéma, a gente fazia ele todo solto.  Já o Ballet Mécanique (Fernand Léger/Dudley Murphy) era todo ensaiado, entrada por entrada. Na época também, o Cao Guimarães, que é um grande parceiro nosso, trabalhava muito fazendo curtas experimentais e a gente fazia a trilha desses filmes. Logo, a gente passou também a exibir esses filmes do Cao nas nossas apresentações ao vivo e isso passou a ser um elemento a mais no nosso trabalho. Nessa última exposição no MOMA de São Francisco, a gente fez a projeção de um vídeo feito pela gente mesmo. Mas, nesse caso, as imagens têm uma função bem menos narrativa. A proposta é muito mais de uma articulação direta com outros elementos do nosso trabalho, no caso as máquinas que a gente usa. As imagens projetadas são imagens feitas com uma lente macro de detalhes das máquinas e a gente criou um dispositivo pelo qual o próprio movimento das máquinas edita essas imagens durante a apresentação.

RMS: O lugar que essas máquinas, esses artefatos sonoros construídos por vocês, ocupam no trabalho da dupla é bem importante. Como é que vocês chegaram a esse arranjo?

Marcos – Pode até parecer engraçado, mas é verdade isso. Como O Grivo somo só eu e o Nelson, duas pessoas, ficava um pouco complicado fazer uma orquestração complexa só com duas fontes sonoras. A gente começou a trabalhar com esses objetos pra chegar nesse som mais complexo, com mais possibilidades. Ao invés de passar de um para o outro,  aquela coisa de pergunta e resposta, você cria muito mais possibilidades quando você tem outros músicos. Como a gente não conseguiu outros músicos (risos), a gente começou usar essas máquinas. As gravações que a gente usava nas nossas apresentações no começo da carreira tinham essa função, mas as máquinas tão produzindo o som naquele exato instante, elas também são uma presença física. É algo bem mais interessante.

Nelson- E  o mundo das artes visuais acabou se interessando por essas máquinas também. As vezes, sem a gente (risos). Nessa exposição do MOMA, por exemplo, as máquinas estão expostas lá sozinhas, por si mesmas. Fomos excluídos (risos).

RMS: Eu imagino também que com uso dessas máquinas vocês tenham também conseguido criar variações, até mesmo coisas imprevistas, que eram impossíveis lá no começo da carreira de vocês, quando vocês recorriam, apenas as gravações, não é?

Marcos- Na verdade, a gente busca transformar um pouco a coisa mecânica, repetitiva, da máquina. Em primeiro lugar, a verdade é que existe uma constante, algo fixo sim que, no caso, é um certo tipo de sonoridade que a gente espera que aquela máquina produza e que faz sentido no contexto composicional daquela música. A preocupação seguinte é criar variações em torno do funcionamento dessa máquina. Pra isso, a gente usa recursos timers, onde a máquina ora funciona, ora pára, ora funciona apenas parcialmente. E as manipulações que a gente faz com o computador, plug-ins processando esses sons, cria uma segunda camada de variação. A gente faz esse tipo de brincadeira: de dentro da sonoridade da máquina, a gente consegue desenvolver algo que não é só o som mecânico, estabelecendo um percurso de materiais a serem explorados.

Nelson- Tem muito random também. O que a máquina toca é definido por processos aleatórios. Na verdade, a gente vai combinando estratégias. Então, as vezes a gente vai pra coisa da pergunta e resposta, aí volta pra outro campo, as vezes a máquina tem um papel central, outras ela só fornece uma base…a gente vai variando essas estratégias a cada concerto. Em outubro do ano passado, a gente foi apresentar um trabalho na Alemanha e as coisas lá eram bem determinadas: “A máquina x vai tocar nesse momento; eu vou tocar isso e o Canário vai tocar aquilo.” Logo depois, a gente ficou cansado desse formato, a gente tomava muito pouco susto no meio da conversa. A última apresentação que a gente fez agora em São Franscico já era completamente diferente disso, muito mais livre. A gente rompeu com essa ordem pré-determinada completamente. Então, as vezes tem uma máquina que tá tocando e a gente entra com um material que é bem diferente, fazendo combinações que a gente não achava que pudessem acontecer. Em alguns momentos, a gente desligava todas as máquinas e ficávamos só nós dois. As vezes a gente ligava todas as máquinas de uma só vez. Não tinha nada pré-estabelecido.

RMS: Eu assisti a um vídeo da exposição de vocês na Bienal de São Paulo e nela tinha umas 10 máquinas funcionando ao mesmo tempo. O que poderia causar a impressão de uma saturação de sons, um excesso qualquer. Mas, ainda assim, a impressão que se tem é o contrário disso. Isso se deve ao uso que vocês fazem da pausa e do silêncio no trabalho de vocês?

Marcos- Na verdade, o som da máquina é complexo em relação ao timbre, mas, ao mesmo tempo, ele é o que é, não tem muito como fugir disso. Então, de certa forma, você tem que assumir esse som. E, pra que você possa, de fato, contemplar esse som nos detalhes que ele tem, você precisa de algum tempo. Então, no nosso trabalho, em geral, os tempos são dilatados. O que leva a um certo minimalismo, onde as coisas permanecem num mesmo fluxo . Esse tempo acaba valorizando as nossas improvisações também já que as mudanças, quando elas vêm, são percebidas de uma maneira mais intensa. Nossa música não é uma música de virtuose;  então cada nota tem um valor muito grande, timbristicamente a coisa tem que funcionar.

RMS: Essa pesquisa de objetos de vocês é uma pesquisa de timbres na realidade…

Marcos- Sim, o timbre é muito importante. E quando você acha um som desses, ele se sustenta por algum tempo. E esse trabalho de pesquisa, ele é muito grande. Não é tão fácil assim achar esses sons. Não é todo som que tá valendo, que é interessante ou adequado ao nosso trabalho.

RMS: E o trabalho de vocês é muito focado nessa experiência, digamos, “concreta”, “substantiva”, do som. Os nomes das músicas de vocês, por exemplo, em geral ou fazem menção ao objeto que vocês usaram pra compôr (Taças Martelo, Folha de Metal) ou a alguma característica formal básica delas (Rotação, Sopro)…

Nelson- Acho que o nosso trabalho tem mesmo essa característica. Ele é bem concreto, não tem grandes divagações intelectuais. E as máquinas contribuem pra essa impressão. Elas são uma presença física, elas são funcionais no sentido de que elas servem também como uma representação muito direta dos sons que elas geram.

RMS: E o que vocês acham do formato dessas exposições como um meio de apreciação do trabalho de vocês?

Nelson- Uma coisa legal desse formato dessa exposição é a liberdade que a pessoas têm de explorar, percorrer mesmo, o nosso trabalho. Lá na Bienal, a gente tinha umas 10 máquinas ligadas. Alguém podia se aproximar de uma delas, depois de outra, mudando a percepção de cada uma dessas máquinas e da relação delas com o todo. Nos concertos, a gente tenta criar também esse tipo de imersão. Nossas apresentações, em geral, são quadrafônicas, por exemplo. A gente tem essa vontade de colocar a platéira dentro da música. 

Marcos- Quando não tem palco é melhor ainda porque não tem essa divisão entre nós e a platéia.

RMS: No trabalho de vocês com cinema, vocês chegaram a fazer o som direto de alguns filmes além de compôr a trilha sonora deles. O fato de sair e gravar chegou a influenciar a composição da música num segundo momento?

Nelson- Por conta de outros compromissos, a gente tem feito cada vez menos som direto. Fica difícil ficar um mês fora em função de um filme. A maioria dos filmes que a gente fez tinha uma estrutura de produção simples também, com equipes bem pequenas. Ainda assim, as vezes o trabalho ficava monótono. Fazer ficção então…as vezes você fica horas esperando pra filmar alguns minutos só.

RMS: Mas, além do som direto propriamente dito, vocês gravavam outros sons também que entravam no trabalho de composição de vocês?

Nelson- Na maioria das vezes, essas oportunidades não eram muito claras. Mas recentemente a gente fez a música do Joaquim, do Marcelo Gomes, A gente só fez a música, mas o Marcelo pediu que a gente só usasse gravações de campo: sons ambientes, algumas experimentos… Coisas que a gente fazia no começo da nossa carreira como colocar um microfone preso diretamente no tronco de uma árvore, como se fosse um microfone de contato, e começar a raspar… Então, muitos desses sons que a gente gravou lá atrás, a gente acabou usando na trilha do filme.  Foi bem bacana voltar nisso. Então, embora não faça muito mais gravação de campo, eu conheço alguns trabalhos. Tem muita gente boa fazendo coisas muito interessantes e com uma qualidade espetacular. 

RMS: Li um texto da Marina Mapurunga onde ela definia o trabalho de vocês como sendo um “minimalismo amplificado”. Minimalista porque vocês se utilizam de objetos, de certa maneira, muito simples e delicados e amplificado por conta do trabalho de captação e manipulação eletrônica dos sons gerados esses objetos. Vocês concordariam com essa definição?

Nelson- Bem, existe na música essa escola de composição de gente como o Steve Reich, em que você trabalha uma forma repetitiva, bastante estendida no tempo, a que se dá o nome de minimalismo. Acho que o nosso trabalho tem um pouco disso também. Mas ele tá  mais próximo do sentido de minimalismo como nessa definição da Marina, de produzir com recursos mínimos uma sonoridade orquestral, muito mais do que num tipo de organização formal típica de uma composição minimalista tradicional. A gente tem muito mais afinidades com o trabalho do John Cage, por exemplo, do que com o Steve Reich.

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