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Nov 27 2014

Sonoridades no Cinema Brasileiro: Danilo Carvalho e o som de “Vilas Volantes, o verbo contra o vento” – PARTE II

Danilo e soldados do som

Dando continuidade à conversa realizada com Danilo Carvalho que teve como eixo central o som do filme “Vilas Volantes, o verbo contra o vento” (Alexandre Veras, 2005), mas que também abordou outros lados da pratica sonora, segue a segunda parte.

Parte II) Formação em cinema: parcerias e relações.

Guilherme Farkas: Um dos motivos que me levaram a me interessar pelos filmes que você faz, tanto no Vilas Volantes: o verbo contra o vento [1], quanto o Sábado à Noite [2], entre outros, é justamente esse tipo de som que renova um certo cenário de cinema, um certo fazer som, e de se distanciar de um fazer som mais convencional. É justamente isso que estou buscando na minha pesquisa, esse tipo de possibilidade de criação de som, enfim. Só para pontuar, fale um pouco mais sobre a criação cinematográfica mesmo. Se por um lado a música é forte para você, você também faz muitos filmes, você está então imerso no processo do fazer cinema…

Danilo Carvalho: Parece que a música é maior, falei que parece que é maior. Mas quando eu estou fazendo um filme, o filme fica maior do que qualquer coisa. Eu não como, não bebo, não durmo. Quando estou fazendo um longa-metragem eu não consigo nem atender telefone quando estou fora do set. Eu fico totalmente me projetando para uma pós-produção, fico me projetando para uma ilha (ilha de edição) para montar aquelas sequências que eu acabei de fazer. Como hoje eu edito e faço desenho de som de filmes, faço mixagem, trilha, quando eu estou captando, eu fico sempre pensando no que que isso pode se transformar. Não fico captando matando um serviço, eu fico captando como se eu estivesse compondo, meus microfones são meus instrumentos, são meus músicos que estão comigo. Eu fico compondo aquilo pensando. Então eu sempre peço extensões de sons no início dos planos, converso com o diretor para trabalhar num set relaxado. Claro que a maioria deles não dá, mas hoje em dia eu estou filtrando, querendo trabalhar mais com mais diretores que…. Na verdade, hoje eu quero ser mais feliz no set! Inclusive eu até pensei em parar de fazer set porque eu tinha pego uma leva de filmes que eu sofri muito, não vou falar quais filmes são mas vários filmes que eu sofri muito. Pensei então duas vezes se era isso mesmo que eu queria pra minha vida. E como eu gosto muito disso, tem filmes que me fazem desistir do cinema e filmes que me fazem acreditar que eu nasci para isso! Então eu fico flutuando entre isso, tem filmes que me fazem bem e outros que me fazem mal. Agora eu estou tentando filtrar isso. E os filmes que me fazem bem são os que dão mais certo, que eu fico mais feliz, que eu consigo colocar mais o meu jeito de trabalho e o som chega do jeito que é….Me perdi um pouco agora…

G.F.: Fale um pouco sobre sua formação em cinema…

D.C.: Eu não via muito filme até quando eu conheci o Ivo [3] por exemplo. Quando eu conheci o Ivo a gente ficou muito amigo, ele tinha recém formado no Rio de Janeiro, tinha chegado em Fortaleza. Eu tinha visto bastante coisa, gosto de Cinema Direto, tinha visto muito Jean Rouch. Gosto muito de animação que faz um uso criativo de som. Gosto muito de Jan Svankmajer. Mas nessa coisa dos filmes, o Ivo chegou muito com o cinema aflorado, chegou muito vibrando em Fortaleza, tinha pouca gente formada em cinema lá nessa época. Tinha o pessoal que tinha ido para Cuba [4], da primeira turma de Cuba, os mais velhos. E o Ivo era dessa primeira leva que tinha ido para Estácio [5]. Nós ficamos muito amigos porque ele era muito fã da minha banda, o Realejo Quartet. Comprava discos e discos, levava para o Rio para dar para os amigos, ele era o maior divulgador dessas nossas bandas, do Cidadão Instigado quanto do Realejo. E por conta disso a gente ficou muito amigo e ele viu que eu também curtia cinema. E antes de trabalhar com som eu fazia fotografia, tinha feito alguns trabalhos já. Tinha feito clip, tinha uma produtora de esporte, filmava esportes radicais, voei dez anos de asa-delta, filmava voando, fazia entrevistas voando, filmava campeonatos mundiais de Wind Surf, que eu também praticava. Já era fotógrafo também, ja trabalhava com câmera. Na época Beta e depois aquela PD-150 que entrou no mercado e passou muito tempo bombando. Chamei o Ivo para fazer um clip comigo. Dentro desse clip, falando sobre referências, a gente se identificou em várias questões. Ai íamos ver Tarkovski (Andrei Tarkovski), vamos ver Jodorowski (Alejandro Jodorowski), vamos ver Kiarostami (Abbas Kiarostami), era referência também para os trabalhos do Alexandre Veras [6]. Começamos a ficar muito amigos e junto conhecemos o Alexandre Veras. Juntos fomos fazendo todas as coisas do Ali (Alexandre Veras), ele nunca mais soltou a gente. Então a gente se aproxima e começa esse “cineclubismo”, eu e o Ivo. Começamos a frequentar muito e achamos que tínhamos que morar juntos. Ele tinha uma namorada que meio que morava com ele, eu também tinha uma namorada mas não dava para morar os quatro numa mesma casa. Resolvemos então ir para Sabiaguaba [7], morar lá. Moramos cinco anos lá, montamos o Alumbramento [8], e lá víamos filmes todos os dias! Víamos e discutíamos, tensas discussões sobre linguagem. Tinha o momento do debate, ir na grama tomar um suco, ver a lua, conversar sobre os filmes da nossa vida. Muito filme, muito filme, milhões de filmes.

G.F.: Vocês viam os filmes com algum critério, ou algum recorte? Como era essa forma de assistir filme?

D.C.: Às vezes tinha…. Claro que para os filmes que a gente fazia sempre tinham as referências que todo mundo assistia junto. Mas a gente via assim, abria um HD e decidia na hora mesmo. Ou víamos algo que tinha acontecido na praia no dia (morávamos do lado da praia e íamos todo dia lá)…. “ahn, isso me lembrou tal cena de tal filme, vamos ver!”. “Vamos ver esse filme?” Ai a gente via todos os filmes do diretor. Víamos muito curta-metragem brasileiro, ficávamos sempre renovando. E o Ivo com a bagagem dele da faculdade, ele teve que ver muito filme lá, tinha a vontade de que a gente tivesse o debate que ele teve quando fazia faculdade. O Ivo tinha esse vontade de passar para mim essas coisas, fui vendo junto a faculdade dele toda, as referências dele, foi muito bom isso! Então a minha coisa de ver muito filme foi por aí, vi muito filme nesse período e depois tu cria o hábito, não para de ver filme. Youtube… Ai me chamaram para entrar no MakingOff [9] onde eu baixei e vi muita coisa. Depois que minha filha nasceu, a Dinorah, foi mais difícil de manter essa cinefilia, outras obrigações, enfim. Fico cansado na hora de ver filme, sempre durmo. Bom, vieram esses filmes e o Ivo é meu parceirão, grande amigo, sou padrinho do filho dele, do Ian, vivemos momentos muito bonitos… A Thais, mulher dele, é minha grande amiga, somos uma família. Nós choramos muito quando nos despedimos, ele teve que ir para um lugar e eu para outro. Depois da Sabiaguaba a gente foi morar junto na cidade, moramos numa comunidade vertical lá, que também foi muito bonito, muito bacana mas é isso ai. O Ivo está trabalhando muito, viajando muito pelo Brasil e eu resolvi morar aqui (Parnaíba, PI). Mas então essas coisas dos filmes, a gente começou a fazer muito filme junto eu e Ivo. Ver as referências para os filmes, discutir essas referências, eu cresci muito junto com o Ivo, discutindo… Foi muito bom isso! Meu trabalho com o Ivo em vários documentários, nem sei quantos filmes eu já fiz com o Ivo. Na leva dos DOCTV [10] eu fiz uns dez com o Ivo em vários lugares do Brasil. Fiz vários longas-metragens com ele, documentário de longa-metragem, curta-metragem, inúmeros curtas, curta-metragem de Escola (faculdade de cinema), da galera que a gente dava aula. Nós éramos como que parceiros de dança, entendíamos os movimentos um do outro, o olhar, o corpo, tudo! Eu e o Ivo, a gente faz filme junto… Ele sabe o que eu quero e eu sei o que ele quer. A gente olha um para outro e eu sei que ele quer que eu vá por ali, ou que ele está angustiado porque eu não saí daqui. Eu sei que nesse momento era melhor se eu não estivesse aqui. Às vezes ele vem me dizer uma coisa e eu digo a mesma coisa para ele. Muitas vezes a gente divide isso de uma forma mais orgânica, eu pego um som que estou gravando e mando um sinal no ouvido dele, basicamente em documentário, algumas coisas dentro de ficção que são mais soltas, que temos que ir no “feeling” também. A cena tem um propósito, umas marcações que os atores vão fazer tais coisas, mas dentro dessas marcações tem improviso e a câmera tem que se soltar e eu também estou solto e a gente vai decidir coisas junto. Coloco um som no ouvido dele, ele decide muito ouvindo! Ele não fica só na imagem, ele ouve o que está acontecendo no extracampo e decide a câmera, para onde ele vai também pelo som. Então isso é uma das coisas que faz a gente ficar mais afinado. Nem eu nem ele somos do time das hierarquias clássicas, tento fugir dessa coisa de primeiro entra o fotógrafo, enche de luz, depois vem a direção de arte que ajeita tudo e depois muito depois vem o som para ver o que dá para fazer ali dentro. Já com o Ivo no processo dele fazer luz, eu já estou conversando com ele como poderia ser esse nosso “ballet” naquele momento, porque nessa situação se eu entrar com o boom ali o som funciona dessa forma, se é tão importante para ele aquela luz, se essa luz não pode vir de outro lugar. “Não, tudo bem, podemos mudar essa luz aqui!” . As vezes por uma questão minha ele monta a luz de outro lugar que eu nunca tinha pensado. Ele sempre me pergunta como é melhor para mim. É um papo que eu tenho com o Ivo e alguns outros fotógrafos também. Quando ele termina a luz eu termino o som também, eu já sei o que fazer, o filme anda rápido, direção de arte está ali pensando junto com a gente. O Tatuagem [11] foi muito assim… O Praia do Futuro [12] não! O diretor de fotografia [13] era um cara mais rígido, clássico, um cara bem duro. Ele já trouxe toda aquela escola dele alemã de fazer filme e tal e era isso. Eu entrava depois (para posicionamento de microfones) e ia tentar conversar. Falava para o Karim (Karim Ainouz, diretor de Praia do Futuro) que esse som não vai dar aqui porque a luz está aqui. Ai então íamos conversar com o diretor de fotografia, as vezes ele era um pouco resistente. A gente explicava para ele que aquela cena não tinha sentido se não fosse daquela forma ai então ele ia lá e mexia. Mas era uma coisa sempre demorada…

G.F.: Queria saber como é sua relação com os diretores na fase de pré-produção dos filmes e se você participa de reuniões de análise técnica com o roteiro em mãos.

D.C.: Isso depende da urgência do trabalho, como isso acontece, que produção é… isso varia muito, os trabalhos nunca são iguais. As vezes um filme acontece muito rápido, as vezes é um tapa buraco. Já fiz filme que está tudo andando, começando, vai filmar daqui a seis meses, mandou o roteiro, me convidou, eu topei. Acontece muito de eu não fazer o filme. Porque as vezes eu não gosto do diretor… Eu não faço todo filme, nem que eu esteja precisando de grana. Já desisti de muito filme porque eu não gostava do diretor, o discurso não é parecido com que eu acredito. Eu não faço as coisas que eu não acredito, posso até me envolver, mas só porque no início eu pensei que acreditava. A minha primeira questão antes de tudo começar é trocar essa ideia com o diretor, converso, ligo, e-mail, nós conversamos, vejo o que ele pensa do filme. Quando isso não acontece porque o diretor está não sei aonde e eu vejo que meu diálogo é somente com a produção ai eu já fico um pouco em alerta. Aí vejo que meu diálogo vai ser…. “Pô se até hoje, que está em cima das filmagens, está difícil conversar com o diretor, não estou conseguindo ainda ter aquele papo sobre o roteiro, analisar como vamos fazer, quais são nossas referências…” Será que ele não quer me conhecer? Ver como eu trabalho… Porque tem trabalho que é assim, a produção faz tudo e o diretor fica sentado na cadeira de rei, é o “senhor”. Esse tipo de cinema não me apetece… Então eu tento isso, chegar primeiro, gosto de analisar o roteiro, decupar. Quando eu faço um filme, eu faço um texto sobre o som daquele filme, o que eu imagino sobre o som daquele filme e mando isso para o diretor. Nós conversamos, ele enxerga e vê se é isso mesmo, nós vamos nos comunicando… Tento conversar com o fotógrafo, as vezes é muito difícil se o fotógrafo não é conhecido… Tento conversar com o diretor de arte para saber como é que… Aí muitos filmes tem um e-mail de equipe que você pode trocar e-mail com todo mundo, alguns que se importam com algo mais coletivo, montam uma página no Facebook para juntar todo mundo. Vai postando fotos da pré-produção, vídeos de referência, vai se aproximando de tudo do universo do filme, vai conhecendo as pontuações dos profissionais lá, a pontuação do diretor de arte, pontuação do fotógrafo. Você começa a ver como cada um pensa o filme, isso é ótimo! Mas isso é a minoria! Quando isso já não acontece já vou ficando triste, entendo que é o trabalho de um filme que não vai para muito lugar, mas entro na proposta, preciso filmar, preciso ganhar dinheiro para manter minha vida, é com isso que eu trabalho e vou lá fazer o filme. Esses são os filmes que eu sofro, são filmes que estou fazendo uma função técnica, desse nome horrível, “técnico de som”! Eu não sou técnico de porra nenhuma, nunca estudei esse nível tão técnico, acho isso muito ruim. E essa coisa de brigar por espaço, chega um momento que… Eu explico bem, eu não vou brigar por espaço, eu não sou desse time, eu não brigo com fotógrafo não brigo com ninguém. O filme não é meu, o filme é da produção, o filme é do diretor, as vezes mais da produção do que do diretor, o diretor é uma marionete da produção que quer transformar a ideia dele numa coisa comercial, isso acontece muito! Eu chego para produção e digo, “olha, vai acontecer isso, isso e isso. Se a gente continuar e tiver isso, a gente vai ter uma pós (pós-produção) que vai custar muito mais caro do que você ter mais dois dias de filmagem. Você vai ter que contratar pessoas para fazer isso, isso e isso, para dublar isso, para fazer aquilo. Ir para essa locação de novo vai custar muito mais caro. Então assim é melhor ter um cuidado com isso, isso e isso”. Sabe? Como cuidados de isolamento acústico de um lugar, cuidados com a roupa dos personagens, ou refazer uma determinada roupa numa situação. Ou ter tempo para montar um microfone aéreo em cima de um praticável porque daquela outra forma não funcionou e todo mundo está correndo e vai fazer do jeito ruim porque é o jeito que está dando para fazer. Ai é isso que vai broxando e é isso que vai me fazendo ficar chateado com o cinema. Mas essa coisa de brigar por espaço, é um cinema que não… Eu sei qual é esse cinema, já participei desse cinema num momento da minha vida, porque a gente tem que participar de tudo nessa vida para saber o que não gosta e identificar onde que você tem que atuar. Eu acho isso muito chato, fica esses departamentos todos bem definidos. Tem filme que as pessoas nem se falam. É o “pessoal do som”, tem o carro do som, “pessoal da fotografia”. Aí fica aquela coisinha dentro do set, set grande, as pessoas não se falam. Pô bicho que filme é esse?! Eu não quero isso para minha vida, eu não gosto disso. Eu gosto de fotografia, amo fotografia! Não vou ficar brigando com a galera de fotografia. Eu adoro arte (direção de arte), adoro a galera que trabalha no visual do filme e tal. Não vou ficar brigando, tenho que curtir esse momento. Eu tenho um artifício, eu rodo, dou um “rec” bem antes (começar a gravar sons) e faço uma pergunta para o diretor para quem está ali, para o platô, para produção: “pessoal, o filme vai rodar assim mesmo, é isso? Diretor, você prefere esse som mesmo, com toda essa maquinária ao redor funcionando? É assim? Todo esse ruído? Isso compõe o seu som, está tudo bem assim? Vamos rodar assim mesmo? Então beleza já está rodando faz tempo…”. Então lá na hora de montar o filme, seis meses depois, que todo mundo já esqueceu, já rolou festa de filme, todo mundo já se embriagou, já está tudo lindo, todo mundo ganhou seu dinheiro e foi embora, já estão em outros filmes e esse filme está sendo montado ninguém sabe mais que todo mundo sofreu, do que aconteceu e ai está gravado o que eu falei. O montador e/ou editor de som fala: “pô o cara gravou com todo esse ruído?” ai eu falo para o cara ir lá ouvir a claquete. Ai ele entende, está tudo lá! Eu deixo tudo gravado. Quando está rolando uma briga no set eu dou um “rec”, fica gravado, meu posicionamento, meu jeito de trabalho, como eu trato as pessoas. Detesto grito no set, eu não chamo as pessoas gritando, não gosto esse papo de senhor, detesto isso! Meus microfonistas, as pessoas que trabalham comigo, assistentes, são todos meus amigos! Quero que eles se apaixonem por um jeito de trabalhar o som, quero que eles se apaixonem pelo que estamos fazendo no momento, pelo filme, a gente conversa sobre tudo, tem tesão sobre isso. Então o filme tem que ser isso, qualquer coisa na vida tem que ser assim, a gente só vive uma vez, rápido! Então eu não tenho esse negócio de brigar por espaço… Até tem alguns momentos que você sai um pouco, você está vendo uma coisa que se pode construir bem feita, em documentário que não tem como voltar atrás, aí eu até dou uma brigadinha mas eu entendo que não é assim, também não vou me omitir ali da briga por uma coisa melhor, não é isso. Quando eu vejo que não está rolando eu exponho isso para quem é responsável pelo filme e acabou…

G.F.: Como são suas relações no set em filmes que você se identifica. Gosta do projeto, da equipe. Como é sua conduta no set para concretizar questões de som que foram esboçadas na pré-produção?

D.C.: Os filmes que eu me identifico são os filmes que a equipe vira uma família, quando fica todo mundo próximo um do outro, tomando consciência de que o filme está acontecendo através de todos. O que está acontecendo com a arte, participando com a fotografia, tendo um diálogo com o fotógrafo com o diretor… Filmes que eu me envolvo, boto meu equipamento onde for preciso, que eu perca, tudo bem se eu perder um microfone para fazer um som… É o meu rastro, onde eu quero escrever a minha história, minhas coisas, meus trabalhos. Como eu gosto de som, como eu escuto o mundo, como eu escuto os filmes, como eu quero contar essa história junto com o diretor. Eu acabo contando parte dessa história que ele quer contar do meu jeito, um panorama sonoro acaba vindo com meu sotaque, vindo com o jeito que eu gosto. Não tenho como falar qual filme eu me identifico… É isso, as vezes eu não conheço a equipe e acabo me identificando porque tem alguma coisa a ver comigo e eu vou aprendendo a trabalhar de uma outra forma também. A equipe é bacana só que está acostumada a trabalhar de uma forma mais sistemática ali do jeito de organização, de produção e não é uma coisa como o Linz, onde todos os acidentes acontecem [14] do Alexandre Veras que a gente teve um desenho de produção no filme assim de, natural, de ver como as coisas aconteciam da melhor forma e deixar isso acontecer. Nessa ocasião eu pesquisei bastante como seria menos agressivo para a população entrar ali com os microfones, que horas e lugares tinham situações mais naturais deles para eu poder ir buscar e captar… Sei lá, cada filme tem uma coisa. Tem filme que não tem nem tempo para pensar nisso como por exemplo o Sábado à Noite [15] que foi um “free-jazz” loucão. A gente saiu numa van, a equipe, o Ivo na fotografia, eu fazendo som, o Armando Praça… era o que a gente chamava de “abordagem e sedução”, que era o cara que tinha o microfone lapela nele, coloquei dois microfones de lapela se caso ele virasse muito a cabeça. Ele ia pedindo permissão para seguir as pessoas, para ir com elas onde elas estivessem indo. Alguns deixavam, outros não. Os que deixavam a gente saia atrás deles filmando o trajeto, entrando no ônibus, descendo, caminhão, calçada e inclusive tinha muitas falas. Mas o Ivo achou por bem montar o filme mais na experiência sensorial e espacial do filme sem entrar muito nas questões verbais. Quis falar simplesmente sobre o fluxo naquela cidade, naquele sábado a noite, que durou de 18h às 6h. Então nesse filme por exemplo a gente aprendia a todo momento, a gente entendia alguns processos que duravam horas para serem concebidos, para serem feitos durante um filme convencional, coisas que a gente resolvia em cinco segundos por uma questão de sobrevivência. A gente está ali, se dispõem, faz daquele jeito ou não acontece o filme. Então o filme foi um processo criativo e de construção muito orgânico e muito prazeroso, muito nervoso também. Muitas situações… a gente estava dentro de um carro que a gente não sabia de quem era, duas pessoas e o cara ouvindo um funk alto com dois DVD’s dentro do carro falando de prisão, falando de arma, falando de não sei o que indo para uma quebrada. Muitas vezes dentro de um outro carro com um taxista com um gringo dentro falando de como era legal estar ali, não sei o quê… a gente andando por vários universos naquele sábado a noite de madrugada, andando pelas ruas e lugares que a gente nunca tinha ido. Eu sempre cito o Sábado a Noite nesse tipo de experiência porque algumas situações de filme mais normal que sempre se contorna, no Sábado a Noite a gente caia nessas situações. Pegávamos carona com alguém, paravam e deixavam a gente no meio do nada e daquele lugar a gente tinha que se transportar de novo num outro carro, num ônibus ou em qualquer coisa. Foi um exercício muito louco de estar num lugar que não queríamos estar e querer tirar uma coisa boa dali, isso para mim foi interessante. Nesse sentido, falando dos filmes que eu me identifico, as vezes sei lá, não tem tanto a ver com a equipe, é o jeito com que o filme acontece, onde eu consigo traduzir um pouco do que eu penso com o som, porque as vezes os filmes querem tanta coisa, já são tão fechados num roteiro, que você tem que dar uma cara para aquilo que já existe. Um processo de caráter “improvisacional”.

G.F.: Dentro desse espaço do set de filmagem enquanto local de trabalho, local de acontecimento de cinema, de potência, existe espaço para criação através da captação de som?

D.C.: Existe cara! Existe, sempre existe. Se você tem opções se você faz escolhas você tem criação. Passa pelo seu poder de discernimento e inventividade e ai então é criação. Se você tem dez microfones, tem uma cena que você que vai decidir onde fica aquilo, aquilo outro. Claro que isso dentro do formato mais subserviente, mais próximo do que o filme pede ali. Mas você tem os “planos B” tem as coisas de para onde o filme pode apontar. Claro que você não pode com essa inventividade toda, esse poder de criação, você não pode botar para perder um som, digamos assim, quase que óbvio, mais clássico daquela cena, o som que se espera daquele plano. As vezes tem que fazer os dois! Dependendo da situação e da vontade e da humildade do diretor, da parceria dele com som, da confiança dele em você no que você imagina para o som. Tem diretor que me conhece, tem diretor que não me conhece, que quer fazer de uma forma que ele já concebeu. Beleza, se for gostoso o filme… As vezes uma coisa que se espera daquela cena é legal também, é gostoso. Nem todo filme você tem que estar inventando tudo e tal, quando dá para fazer é lindo. Porque você trabalhar com coisa que você não espera é ótimo, você tira um chão do espectador. Acaba que o som ele vai criando no espectador… Os climas são criados pelo som e não pela imagem. E filme é criar clima, o tempo todo. Você vai criando os espaços os lugares, o clima das coisas e vão acontecendo aquelas coisas, aquela história. E o som é responsável por essa coisa. Então se eu consigo mexer com esse clima, criar… Ou “anti-clima”, fazer o contrário. Acaba que tudo isso, de qual produção você se identifica mas, isso acaba passando pela cabeça de quem rege isso tudo que é o diretor. Se você tem um diretor muito bacana, que nem o Hilton (Hilton Lacerda) por exemplo. No Tatuagem agora foi super incrível. O jeito que ele deixa a gente no set, autonomia que ele te dá, a coragem que ele te dá acreditando nas nossas conversas. Ele sabe aproveitar o que eu trago para ele. Ele sabe te deixar de um jeito que é o melhor jeito, que é o jeito que você tem tempo e conforto para fazer aquelas escolhas que você faria se tivesse tempo. Diretor tem esse poder mesmo. As vezes tem um monte de gente boa, a equipe é linda mas o diretor não está muito nessa “vibe”. E acaba que, ele é o maestro. No Linz, onde todos os acidentes acontecem com o Ali, o Ali é um cara que não é da ficção, ele é um videoartista que se tornou documentarista por curiosidade. Ele é um cara que vê muito filme de arte, muito filme experimental, vê muita artes plásticas, o corpo também, trabalha com Videodança. Colocou o Videodança numa posição no Brasil hoje muito legal. Então ele é um cara que dentro das suas limitações do cinema clássico, ele deixa você muito a vontade e confortável porque ele não é desse cinema… Então como ele trabalha com corpo, com movimento, com a sensação, com o fluxo, com a vontade, com o desejo, com o que se constrói ao longo do processo, ele vai te deixando de um jeito que é isso também. O Hilton também, mas o Ali numa outra esfera…

[1] 2005, dirigido por Alexandre Veras.

[2] 2007, dirigido por Ivo Lopes Araújo.

[3] Ivo Lopes Araújo, diretor de fotografia.

[4] Fazer o curso de cinema na Escuela Internacioal de Cine y TV de San Antonio de los Baños.

[5] Estácio de Sá, faculdade privada do Rio de Janeiro que oferece curso de graduação em cinema.

[6] Alexandre Veras é realizador de vídeo e coordenou o “Alpendre – Casa de Arte, Pesquisa e Produção”, onde desenvolveu extensa atividade como curador de mostras de cinema, vídeo e exposições de artes visuais. Também acompanhou a implantação da Escola de Audiovisual de Fortaleza, fazendo o desenho do itinerário formativo do curso e ministrando uma série de oficinas além de fazer parte de seu conselho.

[7] Praia localizada à 15 kilometros do centro de Fortaleza.

[8] Produtora independente de cinema. Fundada em Sabiaguaba e localizada atualmente em Fortaleza. A formação inicial se deu em meados de 2006.

[9] Site na internet com conteúdo vasto de filmes raros, disponibilizados para download em arquivo torrent.

[10] O DOCTV é um projeto de viabilização de documentários que integra a produção independente e as televisões públicas.  Foi criado em 2003 com o nome de Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do Documentário Brasileiro (abreviado como DOCTV) pela Secretaria do Audiovisual, e a partir de parcerias com a TV Cultura de São Paulo, a Associação Brasileira de TVs Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), a Associação Brasileira de Documentaristas (ABD) e o Banco do Nordeste, implantou pólos regionais de produção e teledifusão, abrindo novos mercados e formando novos realizadores.

[11] 2012, dirigido por Hilton Lacerda, fotografia de Ivo Lopes Araújo.

[12] 2014, dirigido por Karim Ainouz.

[13] Ali Olcay Gozcaya.

[14] 2013, longa-metragem dirigido por Alexandre Veras.

[15] 2007, longa-metragem DOCTV dirigido pelo Ivo Lopes Araújo.

Continua…

Sonoridades no Cinema Brasileiro: Danilo Carvalho e o som de “Vilas Volantes, o verbo contra o vento” – PARTE I

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