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Dec 3 2014

Sonoridades no Cinema Brasileiro: Danilo Carvalho e o som de “Vilas Volantes, o verbo contra o vento” – PARTE III

Danilo Carvalho

Segue a terceira e última parte da entrevista com com Danilo Carvalho que teve como eixo central o som do filme “Vilas Volantes, o verbo contra o vento” (Alexandre Veras, 2005), mas que também abordou outros lados da pratica sonora.

 

Parte III) Som em Vilas Volantes: o verbo contra o vento

Guilherme Farkas: Como você se aproximou do “Vilas Volantes: o verbo contra o vento“? Como foi sua entrada no filme?

Danilo Carvalho: Eu ja vinha trabalhando com o Ali, vinhamos fazendo outras coisas, com o Ivo, a gente já era muito amigo além das mesas de bar, de discussões. Do Alpendre [1], criou esse núcleo lá em Fortaleza que durou doze ou quatorze anos. E no Villas ele vinha com esse roteiro que é baseado numa tese do Ruy Vasconcelos [2] que é aquela vila de Tatajuba [3] que por causa das dunas foi sendo coberta e mudando de local. O Ruy escreveu e depois eles adaptaram para um roteiro de documentário, pegando alguns personagens daquele universo. Tinham algumas questões dentro do filme que o Ali queria e a gente conversou sobre isso. Tanto que tem uma parte do som do filme que nem foi eu que fiz, foi o Lênio Oliveira um menino de Fortaleza que era assistente do Márcio Câmara, outro técnico de som de lá que foi para o Rio de Janeiro. Eu estava viajando, eles começaram e eu cheguei em seguida. Foi doido isso porque eu tinha sofrido um assalto e estava sem equipamento, e eu gravei o Vilas numa câmera, numa AGDVX-100 [4], eram dois canais. Tudo que gravamos foi em dois canais, aliás, eu usei um mixer de três canais jogando para uma câmera de dois canais. Porque essas câmeras não tem a compressão que essas câmeras DSLR [5] tem hoje, que são horríveis. E essas câmeras híbridas, como a AGDVX-100 que gravava em fita, como se fosse um DAT, então o som era gravado em fita, muito bom. Se eu mandasse o som passando por um mixer, cortando certas frequências, eu tinha um som ok. Usamos essa câmera mesmo, passei plástico filme nela inteira, e nas vezes que eu colocava para rodar eu deixava sem a imagem, colocava a tampa preta em frente a lente.

G.F.: Mas tinha outra câmera rodando a imagem?

D.C.: Exatamente! Algumas vezes eu ligava também (a câmera que estava sendo usada para gravar som) para enxergar um pouco do som. Então vários sons que eu fazia separado, pela praia, eu tinha as imagens desses sons. Coisas que a gente faz só com o gravador e depois esquece que lugar exatamente a gente estava. É interessante até de estudar, porque na imagem dá para ver em que ponto estavam localizados os microfones e tal. E ai então eu fui para o Vilas com o Ali por causa de algumas questões que ele queria, também a gente discutia muito sobre a paisagem sonora daquele espaço, daquele lugar do filme e por algumas coisas casca-grossa que iam ter no filme. Dois velhos iam conversar andando por meio das dunas subindo e descendo falando de onde eram as casas dele. Dois velhos que discutem muito, são cabeça dura… Fui fazer isso. Tinha a Dona Bil que é uma catadora de sururu que anda pelo meio das dunas, do mar, e a gente queria ter alguns sons dela, tentar entrar na casa dela para catar algumas coisas, o cajado, a bengala dela no chão tinha um som. O Ali processou esse som, tem um ruído quando ela sai andando, dispara esse ruído e fica no ar… Tem um momento que é legal assim, que a gente coloca um microfone de lapela numa moto num plano Abbas Kiarostami, que aquela moto vai embora. É um plano super aberto, que tem uma estrada cheia de curvas, citando um plano no Kiarostami, essa moto passa no meio de umas vacas (Danilo faz som de moto) e o som começa a falhar (Danilo faz som da moto com interrupções de silêncio), o lapela começa a falhar devido a distância entre o transmissor e o receptor, falha técnica mesmo. Nós estávamos usando um lapela Sony [6] (Danilo pega o lapela na sua estante)… Guerreiro… Eu lembro que o Lênio (Oliveira) estava comigo na hora e ele diz: “pô, isso vai ser foda cara, as pessoas vão dizer que o cara não se garantiu, o som está ruim, está ruim…”. Ele muito naquela questão técnica e careta né, técnica e burocrática. Uma questão técnica bem “job” tem que ser daquele jeito que todo mundo conhece, ninguém pode estranhar, ele era um pouco dessa escola o Lênio. E eu digo “não Lênio, não! Está falhando, aqui falha tudo, falha o tempo, falha a memória, falha tudo! Falha comunicação, é tudo longe, isso aqui é isso, esse som se acabando no meio dessa estrada é isso cara! E ele diz que é mas, eu interrompo ele falo que esse som não é feito para essas pessoas que esperam um som mais tradicional. Esse filme dialoga com alguém, você não pode dialogar com todo mundo quando tu faz um filme. Você escolhe com quem você quer dialogar. E essas pessoas que o Ali escolheu são pessoas que estão afim dessas sensações de pensar sobre essa imagem, sobre tempo, sobre o tempo dessas pessoas aqui, que falha para elas! Foi uma longa conversa com ele sobre….

G.F.: Com o seu assistente?

D.C.: Sim, com o Lênio. Na verdade ele não era meu assistente, a gente estava junto eu e ele. Teve um dia, teve uma noite que a gente saiu… Ali era assim, de manhã cedo o Ali não gostava de filmar. Ele acha que acordar cedo só se for para uma situação muito específica. Mas acordar as cinco horas da manhã, tomar café no escuro para poder aproveitar tudo, ele evitava esse tipo de situação. Ele falava que a gente tinha que acordar direito, tomar um café com calma, vamos filmar no tempo das pessoas. Era muito confortável filmar com o Ali por causa disso. Por exemplo, tínhamos marcado para filmar no dia seguinte as oito da manhã, e ele acordava e falava que não íamos mais filmar naquele horário, falava que não estava bem, equipe cansada. O Ali sempre queria filmar com a equipe toda no gás, todo mundo vibrando, quando não vibrava 100% ele não filmava. Então o tempo dele é diferente. E isso imprime no filme. Ele estipulava que no dia seguinte ninguém ia filmar, era dia livre. Para no outro dia todo mundo estar bem para poder filmar. Então estávamos tomando uma cerveja no bar do Mané Pedro e passa um cara com um lampião, segurando um bujão de gás. Eu quando vi aquilo, logo saí e fui seguir os caras. Perguntei para eles onde eles estavam indo e eles me falaram que estavam indo para o mar jogar caçoeira (rede). Perguntei quem que estava indo, eles falaram que eram só eles dois. Perguntei que horas eles iriam voltar e eles falaram que voltariam no amanhecer, lá pelas quatro horas. Eu falei que queria ir com eles e eles deixaram, sem problemas. Falei que iria levar meu gravador. Ai voltei para o bar e falei para o pessoal que como no dia seguinte não íamos filmar, eu iria com os dois velhos na canoa. O Ivo disse que também queria ir. O Ali falou que se os dois fossem ele também iria. Ai eu vi que se estava indo diretor, fotógrafo e som, porque que não íamos filmar? Ai fomos nós três nessa canoa, o Ali fazendo uma entrevista maravilhosa com o cara, um plano que é todo escuro e os pescadores falando durante horas sobre o que tinha ali debaixo (do mar), que era cidade antes do mar invadir. Falando muito, jogando rede, foi virando meia noite, tínhamos afastado tanto que não se via mais o continente. Foi ficando mais de madrugada, foi saindo o sol. Tem uma parte do Vilas, não sei se você lembra, que é uma rede que passa em cima de uma canoa, uns peixes, umas boias. Aquilo é a chegada dessa canoa, foi a única coisa que ele usou na montagem final. Porque ele achou esse material tão forte, tão único, que ele queria fazer uma peça isolada, um curta. Disse que não ia usar para a montagem final do Vilas. Até hoje o Ali nunca usou, nunca trabalhou isso. Acabou usando então o finalzinho da rede, dos pescadores chegando, os peixes. Chegamos no continente as sete horas da manhã. E o Lênio não topou ir na canoa, só fomos nós três mesmo. Foi lindo, lembro que eu chorei para caramba, fiquei emocionado mesmo. Uma situação fílmica, lá dentro daquele mar. Uma situação que as vezes só mesmo o cinema consegue te colocar. Porque eu estaria ali mas de uma outra forma, lazer e não falando de momentos tão foda da vida deles, tão íntimos e isso me afetando e o dia amanhecendo, o mar num lugar lindo. Uma das coisas boas que eu carrego comigo e me faz crer que vale a pena estar fazendo cinema…

G.F.: Você aparece creditado no filme como editor de som junto com o Alexandre Veras. Como foi o trabalho de pós-produção? Você fez mais sozinho, o Ali estava próximo?

D.C.: Pois é… Muitas coisas… Eu fui para lá também por isso. No início do filme eu estava em Cuba fazendo um outro filme. Voltei de Cuba e fui direto. O Ali até hoje brinca comigo que eu não fiz o filme inteiro. Porque ele me chamou para fazer o som direto e eu não podia. Falei então com o Lênio sobre o que queríamos de som, dei algumas dicas para ele e depois que o filme tinha começado e fui para lá, para o set, para fazer o que ainda restava para ser filmado. Então algumas coisas do filme eu fiz o som direto. O desenho sonoro é meu mesmo. E o Ali é um cara que adora toda essa coisa experimental, não tem uma imagem que ele use sem tratamento, o Ali nunca usou uma imagem pura na vida dele. Todas as imagens ele distorce alguma coisa para você não identificar mas sentir que não é normal. Sentir que tem algo que não é dali, cores, texturas. No processo de edição eu fui escolher os diálogos, ele deixou muito na minha mão. O Ali edita deitado numa rede. Então aqui no meu estúdio eu fiz isso em homenagem a ele, tem dois armadores de rede. Eu brinco que a gente edita até o ali dormir, e ele dorme mesmo, dorme rápido. Então você tem que aproveitar o gás dele. E ai eu montei um ritmo com ele. Ele dizia muitas coisas que ele queria, gasta muita energia falando dessas coisas. E depois na parte chata mesmo, que quem está do lado de um editor ou de um montador fica entediado, ele dormia. E ai então nesse momento eu faço o que ele queria e também o que eu quero. E quando ele acordava, as coisas que ele queria eu tinha feito de uma forma. Dava um play e ele curtia muito. Íamos então nessa troca de sensações. Trocar sons de lugar. Um dos desafios nossos era de trocar todos os sons onde aparecia motor de carro. Tentamos tirar todo som que tinha motor de carro, tudo! Inclusive no Linz a gente até brincou um pouco com isso. Tem um momento do carro na chegada que você escuta mais os bixos, o interior do carro, mais o ruído do pneu na água do que o motor. É como se a atenção do cara tivesse toda no lugar, o carro não significa nada ali, e o medo e a sensação dele ali com o lugar que era o que eu queria trazer para a cena. Fizemos no Vilas na cena da bicicleta. O Ali ele escolhe muito as coisas e depois os desenhos, as intensidades os ruídos específicos eu vou chegando mais. Mas o Ali tem uma participação grande em todo processo de construção do filme, todos os departamentos, faz escolhas.

G.F.: O Vilas é um filme que você considera ter um som direto bastante presente? O som direto veio do set como um material rico a ser trabalhado, inclusive como potencial de criação, ou você quis criar e acrescentar sons na pós? Como foi essa relação do som direto com a pós?

D.C.: O que difere o som do Vilas de um som de documentário mais clássico… Porque o documentário é sempre muito real, você não vê muito uma criação sonora em documentários por ai. Geralmente se num documentário mais clássico, tem um plano de uma pessoa andando com uma bengala, você quer ouvir o som dessa pessoa andando com a bengala. Ninguém vai colocar um som de vidro quebrando, ninguém faz isso. Ou colocar um som de um ruído eletroacústico (Danilo reproduz com a boca um ruído eletroacústico), não tem. Vai ter o som de uma bengala. E com o Ali não, ele pensa justamente o contrário. Constrói outros universos para falar sobre o quão louco é estar aqui nesse lugar e não com o som sugerido pela imagem. Então o Ali vai tirando essas sensações de pena, do nordestino que está ali na condição de sofrido. Por ele, ele sempre fica querendo tirar isso e vai para outro lugar, acho bonito isso. Então o que tem de criação no som do Vilas é isso. Até porque a gente só tinha dois canais e tinha que dar conta de uma história a ser contada. No final tem algumas coisas que a gente criou mas o som do Vilas é no geral muito simples. Incluímos então muitas coisas na pós.

G.F.: Você acha que a edição de som dialoga com a montagem de imagem?

D.C.: Uma influenciou a outra. Faz o primeiro corte do imagem, do Fred Benevides com o Ali. Esse primeiro corte a gente vai mexer no som e eu vou indicar coisas pelo som. A maioria dos cortes eles estão fazendo pela imagem. Claro que pelo som também, que o Ali tem essa vibe, mas eu venho com outras questões de som para eu poder dilatar ou encurtar algumas coisas. E ai então sempre mexe, fazemos umas duas ou três alterações antes de dizer que temos um primeiro corte. Faz um pré-primeiro corte. Eu pego esse material, mexo no som, encaminho coisas, penso em coisas, trago questões. O pessoal da montagem aceita algumas coisas, contesta outras, monta de novo e ai finalmente nós temos um primeiro corte para mostrar para alguns amigos, conversar e dai vamos mexendo de novo. É mais ou menos assim que trabalhamos juntos, Ivo, Fred (Benevides), Ali, a gente sempre tem isso. Já fiz isso com o Fred, inclusive eu e Fred, quando o Fred é chamado para montar e eu para fazer o som, são várias dobradinhas dessas que a gente fez, a gente já combina isso. O Fred faz um primeiro corte, manda para mim, eu converso com o diretor, o Fred faz as alterações necessárias de novo e me manda para eu mexer no som…. E o Vilas foi feito assim bem precariamente mesmo. Os microfones não eram bons, fizemos com o ME67, que é aquela segunda linha da Seinheiser. Que para vídeo funciona, mas quando compara com um Newmann ou com o MKH você ja sente a diferença…

G.F.: Foi feita uma finalização de som em algum estúdio?

D.C.: O Vilas nós fizemos em um G3 em casa mesmo, na casa do Ali. Montávamos usando projetor para poder mensurar o som também com grandeza. Porque se você vê som pequeno, na imagem pequena, você tem tendência a pontuar algumas coisas que estão pequenas de uma forma pequena, você acaba colocando o som mais timidamente. E quando você vê aquilo grande você acha que aquilo tem que ter uma presença maior, que o som tem que invadir isso aqui. Sempre edito som com uma tela maior. Faço uma primeira mexida com uma tela menor para ter mais foco e depois dou uma passada toda no filme já vendo grande para tentar ir levantando algumas coisas… O Vilas foi um filme precário de equipamento mas muito bom de vivência. Hoje a gente faria muitas coisas diferente no som! Depois com o Ali eu já fiz outros trabalhos. A gente fez um filme, que ele está montando ainda sobre os currais de peixe. Currais de peixe são vários paus enfiados dentro da água fazendo um cerco, os peixes entram e não saem. Os pescadores vão lá e pegam. Eu e o Ali fizemos um 5.1 na raça. A gente numa canoa no meio do mar e ficávamos eu com dois microfone e íamos dizendo: “microfone no canal 1 apontado 45 graus à esquerda e microfone no canal 2 apontado 45 graus à direta apontando para frente do curral” e variamos uma série de posições para dar conta de todos os graus e posições de microfone ali naquele espaço. O Ali gosta desses experimentos. E hoje com equipamento maior e melhor, a gente teria feito o Vilas muito melhor.

[1] Alpendre, casa de arte, pesquisa e produção. Local emblemático da cena de arte conteporânea independente em Fortaleza. Criada por Alexandre Veras.

[2] Poeta e professor de comunicação cearense. Foi colaborador com Alexandre Veras no “Vilas Volantes: o verbo contra o vento”. O filme é livremente inspirado na sua tese de mestrado.

[3] Vilarejo cearense localizado a 300 kilometros de Fortaleza.

[4] Câmera de vídeo da marca Panasonic.

[5] Câmeras de fotografia que filmam em alta resolução (1920×1080). Digital Single Lenses Reflex (DSLR).

[6] Microfone de lapela Sony, série UWP-C1.

PARTE I

PARTE II

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