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Mar 6 2015

Sonoridades no Cinema Brasileiro: Fernando Henna e Daniel Turini e o som de “Avanti Popolo” e “A Cidade é Uma Só?” – Parte III

a cidade e uma so

Terceira e última parte da entrevista com os profissionais sonoros Fernando Henna e Daniel Turini. Os sons de “A Cidade é Uma Só” (Adirley Queirós, 2011).

Guilherme Farkas: Sobre o “A Cidade é uma Só [1]”, acho que já é um caso completamente diferente. Um pouco de tentar recuperar, na pós-produção, algumas coisas, garantir inteligibilidade de alguns planos e fazer uma mixagem que segure o filme. Em alguns momentos, o filme flerta com uma estética de um som hiper-realista [2], em que você tem uma condição de escuta bastante amplificada em que todos os eventos soam, produzem sonoridades que num modo de produção documental, muito dificilmente seriam gravados. Queria saber então se essa estética do hiper-realismo sonoro foi uma sugestão do Adirley.

Fernando Henna: Quem pode te responder com mais propriedade mesmo é o Guile Martins. Do que veio para cá, essa coisa da chave do carro por exemplo já tinha na edição de imagem, deve ter sido um acordo entre eles. O que tem bastante é uma edição de som super esperta. Pouquíssimos sons de banco, todos sons captados durante o filme, nas locações mesmo. Acho que o Guile quando fez o som…

GF: Na realidade quem fez o som direto (como está nos créditos finais do filme) foi o Francisco Craesmayer.

FH: Mas o Guile gravou algumas coisas com o Adirley, estava sempre por lá. Acontece que o Guile tinha um enorme domínio sobre o som direto, dos ruídos. É um cara que foi ouvindo, editando. Então por exemplo, todos os carros que passam, são vários, um absurdo! Super acelerados, carros de som, tem uns dopplers [3] lindos! Carros de som, charretes. Tudo isso foi som colecionado ao longo do material bruto, trabalho enorme! E esses carros, acho que é uma das coisas mais bonitas do filme no som, o Guile foi recortando do som direto de cada um e fez uns picos de volume super bonitos, isso já veio da edição. E foi daí que a coisa começou a crescer para outros lugares, mas isso é um mérito do Guile mesmo. Em relação a um hiper-realismo é por ai. Tem a cena que ele (Dildo o protagonista) vai num baile de RAP [4]. Eu acho essa cena super bonita no som. Tinha um microfone parado junto com a câmera e aquele som estava rolando de verdade. Eles gravaram um estéreo e tinha esse microfone da câmera super saturado. Mas como este microfone estava super saturado, a saturação na hora em que a música está bem alta… Muito grave no estéreo e o microfone da câmera super saturado. E ai tem uma manhã que eu demorei para entender. Quando tem muito, muito grave, a única maneira de você definir outro som, é você saturar o microfone, rachar o som mesmo. E como tinha esse microfone no centro, saturado, a voz do personagem ficava descolada e isso vinha de vez em quando. Então você ouve o cara cantando na câmera, e o “pau-comendo” no estéreo que é super grave. O que a gente fez, a gente pegou esse grave e dividiu em dois, um com só grave e subgrave e aumentou muito e o outro a gente deu uma limpada para deixar a região da voz em destaque, cavou a região da voz, lá em 2Khz (2000 hertz) mais ou menos e deixou a música num lugar muito mais reverberado. Então essa cena é super bacana. Parece que é uma cena armada, mas é só porque eles gravaram com dois microfones e um microfone ruim, saturado, e ai deu certo.

GF: Mas em outros momentos do filme, por se tratar de um documentário e da dinâmica do filme e do universo do Adirley, a pós-produção teve o papel um pouco de tentar “melhorar” o som do filme no sentido de reparo mesmo?

FH: A sim, o filme inteiro, é mó guerrilha lá!

Daniel Turini: Acaba sendo parte da linguagem do próprio Adirley. Porque aí vai para esse certo bom gosto apurado que ele meio que descarta, ele quer mostrar outra coisa. Ele quer colocar o som dos lugares mesmo, dos objetos, dos carros e das coisas que tem lá mesmo. E acho que tem uma coisa de busca mesmo, de ser o primeiro longa-metragem dele. Então de repente tem outros meios de buscar que não sejam tão de ficar procurando na pós, soluções. Por enquanto faz parte da linguagem dele. A guerrilha é vista como linguagem e é tudo ao mesmo tempo agora. Até por isso é importante a proximidade que ele tem com o Guile por exemplo, a proximidade que ele tem com as pessoas que estão em volta. A gente acabou só mixando, só participando do final do processo, então tem quase uma visão de espectador, mais fora do processo como um todo mas acho que faz parte isso do Guile estar lá na comunidade estar gravando coisas lá.

FH: Acho que tem um mérito também da montagem de como eles assumiram essas coisas muito ruidosas que tem cenas muito silenciosas também, sempre intercaladas. Tem todo aquele jogo do estúdio que é tudo armado, a rádio. Aquela rádio eles montaram e encenaram. Então são lugares que você ouve tudo. Quando eles param para contar uma história você ouve. O resto é o personagem andando, panfletando, que é ruidoso. E o Adirley e o Guile sempre pediam para aumentar o que tinha ver com o personagem. Por exemplo o comício da Dilma (no final do filme), o que tinha mesmo era o registro do… Acho que tinha um lapela nele (no Dildo) que male-male dava para ouvir alguma coisa e tinha o caminhão de som que se você perceber tem alguns loops. Todo o resto é reconstruído, então as buzinas, fogos, gente, carro ,vozerio, outros carros de som, é tudo colocado. Quando ele passa por diversos tipos de carro de som, é tudo edição de som, era uma forma de ampliar. O jingle do personagem (Dildo) é tudo de verdade. E ele saia cantando um monte de Rap e diz que o cara tem esse jeito mesmo.

DT: A linguagem do Adirley passa por isso de misturar ficção e documentário. Não há barreira entre uma coisa e outra.

GF: Nesse sentido, vendo os filmes juntos (“Avanti Popolo” e “A Cidade É Uma Só?”), o Avanti se aproxima da Cidade porque a música sempre está como elemento diegético. Isso é, por exemplo, uma opção do Adirley?

DT: Não sei, só posso falar como espectador. Eu acho que a música está na vida daquelas pessoas mesmo. Eles tem a rádio comunitária mesmo, tem uma relação com a música, a música é a válvula de escape do lugar, é uma forma de expressão. Na verdade o cinema do Adirley vem depois. Para o Adirley o cinema é um segundo momento de expressão daquele lugar, a música vem primeiro. Nativo dali é a música, todo mundo sabe que é, compartilha. Acho que agora o Adirley está mostrando que pode ser o audiovisual, até trazendo todo mundo junto para isso, como são sempre os mesmos que atuam nos filmes, que pensam. Acho que a música nesse caso é quase documental. O personagem do filme é daquele jeito, mas o cara na vida real também é! Ser engraçado e crítico através da música.

FH: E aquele mulher que participou do jingle de uma campanha de higienização de Brasília, eu só entendi isso depois. Do Avanti, eu tinha esquecido de falar, foi um baita exercício para o filme do Marco Dutra (“Quanto Eu Era Vivo”). Muitas coisas que a gente achou no Avanti por exemplo a gente conseguir ir além no filme do Marco. Essa coisa da espacialidade, som dos passos, casa que range, com personalidade.

GF: Os personagens cantando, no estúdio, é tudo som direto?

FH: Sim! Tudo som direto. E o coro inclusive, som direto. Aquele coro que tem cara de uma textura antiga [5] é fake, aquilo não é uma imagem de arquivo, eles que encenaram e eles que gravaram o som.

GF: As vinhetas, com jornalistas falando, aquilo é som de arquivo?

FH: Sim, isso é tudo de arquivo.

GF: Acredito que quando o filme está nesse limbo entre o documentário e a ficção, o som tem mais liberdade para transitar, mais possibilidades criativas. Acredito que num longa-metragem de ficção mais tradicional, mais comercial o espaço de criação do som é menor. Embora o trabalho de som seja enorme e extremamente complexo. Vocês acham que existe essa diferença para som enquanto espaço de criação, de laboratório?

DT: Na verdade é que no caso do filme do Adirley o som ele é mais um dos elementos que faz com que você não saiba se aquilo é documentário ou ficção. É o elemento que mais mescla e entra nessa dinâmica de documentário e ficção. O som é um dos elementos que se vale e reforça essa característica. No filme do Marco, filme de gênero geralmente já tem as convenções, já se espera do som uma série de coisas. Para gente…

FH: Mas se na ficção ou no documentário, se um tem mais liberdade que o outro, na maior parte dos documentários que a gente vê é aquele formato tradicional.

DT: Porque acredito que se o documentário tem o caráter de “documento”, de registrar certas coisas, talvez o som acaba sendo mais restrito porque o som ele… Porque o mais legal do som é quando ele pode fazer parte da manipulação do cinema, na realidade, da narrativa. E quando é algo mais purista, ou um filme mais realista. São filmes com muito trabalho, nós trabalhamos muito nesses filmes, se trabalha muito para um filme ficar realista só e bonito. Mas ele não tem essa liberdade ou esse desejo da manipulação. No filme do Daniel Ribeiro, o “Hoje eu Quero Voltar Sozinho” (2014) que a gente fez o som agora, na primeira reunião com ele ele disse: “é, não tem som esse filme, não tem edição de som”. Brincando claro, mas querendo dizer que também tem filme que pede mais e tem filme que pede menos. Que o som não podia chamar muita atenção, tem que ajudar o filme. A ambientação, os ruídos, a edição de som. Tudo tem que soar bonito, tem que soar bem. Mas não estava ali, estava muito mais na música que ele usava, estava muito na ambientação da escola. Não existia tensão entre som e imagem. Não existia busca de linguagem diferente nessa relação entre som e imagem ou só de uma sonoridade específica. Mas acho mérito o diretor saber o que ele quer e entender. Mas é isso, quando o filme é mais realista (no caso de um cinema clássico narrativo) tem muito trabalho mas é algo que a gente sabe que não é para aparecer tanto, não é para ter tensão, desconforto.

GF: Vocês acham que o trabalho que vocês vem realizando em todos esses filmes, é um trabalho criativo? Existe criação e experimentação? Processos criativos e a descoberta de novos fazeres?

FH: Super criativo, o som pode ir além. Nós temos que lidar com a vontade de ir além com a demanda de um filme. Acho que no dia-a-dia nós estamos na luta por colocar coisas mais legais e também entender qual é a demanda do filme. Eu chutaria meio a meio, meio criativo meio técnico.

DT: Acho que os dois sempre vão estar juntos, depende muito do filme, se o filme pede mais ou menos. Se mais realista, mais técnico, um filme de terror é muito mais criativo por definição do gênero mesmo. Mas acho que a nossa luta é um pouco isso, é um pouco, ter espaço para que o criativo seja mais valorizado. Uma coisa que eu sinto muito de não conseguir fazer mais é pesquisa. A gente não tem mais tempo de tirar uma semana buscando referencia para propor… O que os outros cabeças de equipe fazem em um filme, a arte vai propor uma paleta de cores, a foto vai propor uma referencia de cena, de iluminação, de contraste. Um pouco por desconhecimento do diretor e do produtor de achar que o som é uma área muito técnica, que não vai conseguir discutir isso. Tem até uma coisa que é muito ruim para a gente que as pessoas se acham meio incapazes de discutir o som porque acham muito técnico. Justamente por não ver que na verdade se a pessoa nos dizer que tal cena passa uma sensação x ou y, isso já é um elemento que o som pode traduzir. Discutir a narrativa e o audiovisual como um todo. Se ele percebe um contraste para a fotografia, isso pode servir para o som também. Ele não precisa saber o que é esse contraste na fotografia, as nuances do contraste, entre as cores. Isso quem sabe é o fotografo. A gente também vai ter esse suporte técnico mas a parte criativa não deixa de existir nunca. Acho que falta um pouco esse reconhecimento no mercado. A gente internamente dentro do estúdio com nossos assistentes, com o mixador, técnico de som e com o diretor mais presente, estamos todo tempo em contato com esse lado mais criativo, nossas conversas passam por isso. Mas se não tem esse interesse do diretor, se não tem esse outro lado, na interface pode parecer um trabalho puramente técnico, na interface com o resto da equipe, do filme.

GF: Quanto à essa criação e experimentação, isso existe no campo da captação de som direto?

FH: Acho que o som direto tem uma demanda mais técnica sim.

DT: Mas tem projetos que rola. O ideal é que tivesse uma pessoa que encabeçasse tudo e que indicaria o técnico de som direto, acompanhar o que o técnico de som está conseguindo tirar de som, se está dentro do que eles tinham pensado juntos. Acho que esse trabalho como cabeça de equipe não existe. O Laroca [6] (Alessandro Laroca) hoje é o cara que consegue…

FH: Não, nem ele… O técnico de som pode ter um trabalho mas criativo. Mas ele tem mais o trabalho de convencer as pessoas a não falarem no meio do take. Mas existe milhões de possibilidades para um cara com um gravador de oito pistas e um arsenal de microfones.

DT: Volta também para aquela outra questão do que se espera de um som direto. Se se espera uma voz bem captada ou se se espera já uma proposta de sonoridade como um todo. Varia de projeto.

FH: Eu acho que no departamento de som, o som direto é o que menos tem espaço para experimentar. A gente até tem na mixagem. Mas o som direto não, ele não pode errar. Não existe um espaço laboratório para esse cara. O cara do som direto pode gravar ambientes com diversas configurações de microfone, mas na hora do vamos ver mesmo, o que menos consegue exercitar esse laboratório dentro de um filme é o som direto. Eu vejo muito mais as nossas peças eletroacústicas do Sérgio, nosso assistente, dentro de um filme do que o Gustavo conseguir botar toda a pratica dele de conseguir gravar com milhões de microfones, entendimento de acústica, coisas que ele sabe fazer dentro de um filme. Não dá! Tem que botar um microfone!

[1] 2012, de Adirley Queirós. Fernando Henna e Daniel Turini trabalharam na finalização de som. Mas quem fez o som direto foi o Francisco Craesmayer, o a edição de som, Guile Martins. Guile tem um papel importante na convivência com o Adirley e na construção sonora do filme.

[2] Aqui me refiro ao conceito utilizado principalmente por Ivan Capeller no texto “Raios e Trovões: hiper-realismo e sound design no cinema contemporâneo” do catálogo da mostra “Som no Cinema” organizado por Eduardo Ades, Gustavo Bragança, Juliana Cardoso e Rodrigo Bouillet em 2008.

[3] Efeito que o som se deslocam geograficamente no momento de captação.

[4] 52:30 do filme.

[5] 19:42 do filme.

[6] É supervisor de edição de som, sound designer, mixador e diretor técnico e artístico da 1927 Áudio, estúdio de finalização de som para cinema e televisão situado em Curitiba. Responsável pela finalização de som de filmes como “Cidade de Deus” (2002) de Fernando Meireles e “Tropa de Elite 1” (2007) e “Tropa de Elite 2” (2010) ambos de José Padilha.

Parte I

Parte II

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