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Jan 27 2012

Entrevista com o mixador Paulo Gama: Parte II

 

Dando continuidade a entrevista com o mixador Paulo Gama, segue a última parte.

 

Artesãos do Som: Qual o papel criativo do mixador em um filme?

Paulo Gama: Eu acho que o mixador, mais do que um grande criador, ele tem que ser um grande artesão. O sound designer sim, este tem que ser um grande criador. O mixador também tem que conhecer e dominar o processo de criação, mas não é a essência do trabalho dele. Você tem que saber fazer um uso criativo dos elementos sonoros, mas o seu trabalho é antes de mais nada artesanal. Tem uma questão também da criatividade técnica. Você saber usar os recursos de forma criativa pra solucionar um problema. Vou citar um exemplo… eu estava mixando aquele filme Quebradeiras, um documentário sobre quebradeiras de coco de babaçu da Ilha do Marajó. Quando o cara gravou, ele estava usando aquele AGC (Automatic Gain Control) na câmera. Que funciona como um compressor ao contrário, quando está baixo o sinal do som, ele sobe o ganho. Então, quando a mulher dava a batida no coco, o volume subia tão alto depois da batida que parecia que tinha um eco. Você escutava uma reverberação muito forte, mas a mulher estava no meio do mato. Naturalmente tinha uma reverberação, mas não com toda essa intensidade que veio. Parecia que ela tava dentro de uma catedral. Nesse caso, a gente reconstruiu toda a ambiência, mas deixamos as batidas originais. Aí usei um gate tentando emular a mesma resposta de velocidade que tinha antes pra que o som continuasse todo por igual. Isso é um exemplo de uma solução criativa técnica para solucionar um problema. As vezes também, você tem idéias pra usar x plug-ins pra que a coisa soe melhor…

Mas quanto a questão artística, eu acho que o trabalho do mixador é essencialmente artesanal. O que eu acho curioso dessa pergunta é que a gente vive numa sociedade que tem esse fetiche da criação. Parece que a criação vale mais do que o artesanal. Mas na minha opinião, os grandes artistas, em geral, são grandes artesãos. Mas, claro, há exceções.

O cara que é músico, na hora que ele está compondo uma música, é um trabalho de artesanato. Ele vai lá, tem uma primeira idéia, depois vai polindo, tira aquela nota, vai acertando a orquestração, é um trabalho mesmo. Artístico… as vezes passa aquela idéia de um cara com uma taça de vinho em um divã recebendo uma iluminação dos anjos. E não é nada disso. É sentar e trampar. Eu tenho um grande respeito pelo artesanato. E acho que o trabalho do mixador é um trabalho de artesão.

 

AS: Falando de documentário… quais as diferenças de mixar documentário e mixar ficção?

PG: São diferentes. Aparentemente eu acho documentário um pouco mais fácil. Na verdade é menos complexo. Tem menos canais, é mais aceito ter problemas de sonoridade. É comum em um documentário você ouvir uma distorção em uma fala, por exemplo… Não dá para mandar dublar. Faz parte da estética do documentário os problemas técnicos, e isso facilita um pouco. A ficção é mais complicada. Geralmente você tem muitos canais… imagina você com 128 canais. No documentário você tem uma média de 40, 50 canais.

 

AS: Qual a importância de cada elemento sonoro da trilha pra você?

PG: Olha… aquele exemplo do Playtime que eu dei, eu gosto muito. Porque lá você tem tudo. Você tem foley, ambiente, diálogo, música, efeitos, tudo. Mas o interessante é que tudo é narrativo, tudo está em um contato estreito com o filme. Eu acho que os elementos têm que se justificar dentro da história, e não dogmaticamente do tipo… tudo tem que ter foley, tudo tem que soar, tudo tem que ter barulho… É difícil dizer a importância de cada um em absoluto. Cada um tem a sua importância dentro do seu contexto particular. Talvez o mais importante seja saber qual elemento que rege cada cena, ou cada filme. E a grande dificuldade de fazer o desenho de som é reconhecer isso antes do filme estar pronto.

 

AS: É que as vezes eu tenho a impressão de que colocam som em tudo pra na mixagem você dar uma afinada…

PG: Isso acontece. Você coloca som em tudo e na mixagem sai alguma coisa. Por outro lado, já teve filmes que eu mixei que tinham pouquíssimos canais e eu acho o som excelente. Pra citar dois exemplos: Feliz Natal, eu acho que o foley não é muito bom, mas o desenho de som é excelente. Profundamente atrelado à história. Eu acabei de fazer um documentário da Marcela Lordy com desenho de som do Ricardo Reis sobre uma obra do Cildo Meireles que passou numa exposição dele no Itaú Cultural… tem várias horas que não tem som nenhum, ou tem apenas um elemento. Na verdade, quando a gente faz um documentário parece que a gente ta fazendo um filme do Dogma 95, você não pode usar um som que não é da cena. E não é isso. Os documentários também são feitos com muitos sons que não são da cena. Exceção talvez os do Eduardo Coutinho, ou o do João Moreira Salles… mas a maioria dos documentários também tem um desenho de som. E esse do Cildo, acho que foi um desenho de som muito feliz. Tem hora que tem gente andando e eu poderia encher de foley, mas tem um som só. E isso tudo já estava tudo muito bem decidido antes da mixagem.

 

AS: Você acha que o grande dilema da mixagem hoje no Brasil é a dublagem?

PG: Não acho não. Dublagem depende muito do ator. Por exemplo: geralmente as cenas que precisam de dublagem são as cenas barulhentas. E quando é barulhenta o ator está berrando. Aí você coloca o cara dentro de um estúdio pra ele dublar. Tudo silencioso, a grande maioria tende a interpretar muito sussurrado. As interpretações ficam muito diferentes e também fica um pouco ruim usar sussurros num volume muito alto. Aí não tem jeito de fazer isso colar. É claro que existem outros problemas possíveis também, se você colocar o microfone apontando pra quina do estúdio e tiver uma ressonância, não vai dar certo. Mas se você tem um bom editor de diálogo que saiba dirigir o ator na dublagem, ele consegue chegar no mesmo som. A grande dificuldade que eu vejo é esse negócio de colocar a voz pra fora.

 

AS: Como é o seu fluxo de trabalho?

PG: Hoje em dia eu tento ir sempre no fluxo que é mais confortável para o sound designer ou supervisor de edição de som. Tem que ser versátil. Existem várias escolas diferentes. Uma você começa com a pré-mixagem de diálogo, pré de ambiente, pré de foley, pré de efeito e mix final. Mas tem uma outra, que eu tenho feito principalmente com a Miriam e o Ricardo Reis, que tem se mostrado muito boa. Assim que começa a edição, eles editam o diálogo e eu já faço a pré de diálogo. Eles editam todo o som do filme com o diálogo já pré-mixado, e aí depois define a lista de dublagem. Então vamos para a mix final com todos os elementos que eu vou mixando sequência a sequência. Costumo trabalhar primeiro música e diálogo. E aí depois eu venho levantando os outros elementos completando, sem fazer pré-mix de tudo. Poupa tempo. Essa versão é muito mais ágil e eu acho que se adequa bem ao nosso mercado. Nosso mercado requer agilidade. Muito difícil você ter um prazo de mixagem maior que quatro ou cinco semanas.

 

AS: Quais as suas maiores influências de filmes, diretores ou mesmo profissionais de som?

PG: Eu me considero um cinéfilo. Gosto de assistir de tudo. Claro que Walter Murch e Ben Burtt são caras que realmente fizeram coisas muito inteligentes com o som. Mas mais importantes que as influências de som pra mim, são as influências da poética. Quais são os filmes que me emocionam, qual diretor que realmente me toca. Então, por exemplo, um cara que eu tenho assistido extensivamente é o Fritz Lang. Você pega M, por exemplo, é uma obra prima do cinema. E é um filme que tem o som profundamente narrativo. Um outro que eu admiro profundamente, principalmente pelos documentários, é o Werner Herzog. Gosto muito também dos documentários brasileiros. O cinema brasileiro de ficção é competente, eficaz, tem bons cineastas. Mas eu acho que o cinema de documentário brasileiro é brilhante, um dos melhores do mundo. E aí eu cito o Coutinho, o João Moreira Salles… Eu acabei de mixar um documentário Iza Ferraz que é muito bem feito. Eu acho o cinema brasileiro muito forte no documentário. É a veia dele. São documentários profundos, com um olhar… “cinematológico”, pra gente inventar um termo aqui. Um olhar “cinematológico” sobre a nossa sociedade.

 

AS: Entrando na parte mais técnica, na mixagem de diálogo tem uma curva de equalização que eu já vi alguns mixadores utilizando, atenuando as médias-altas…

PG: É o famoso “pão de açúcar”. Eu não sei exatamente por quê… o me fala que alguns microfones tem ênfase nas médias frequências. Começa em 1200Hz e pode ir até 2000 ou 3000Hz. Atenuar de 3 a 9dB, dependendo de como está o som direto. Ele sempre soa médias, nunca soa confortável. Fora isso, é só você tirar o de cima e o de baixo que você não houve. Por exemplo, eu sempre corto 24dB por oitava abaixo de 80Hz e de 12KHz, 13KHz pra cima. Mas o curioso é que esse corte, principalmente de altas, varia conforme a língua. Eu mixei uma série norte-americana que chamava Rio, e todo mundo falava em inglês. E em inglês é muito mais fácil mixar diálogo porquê você pode abrir muito mais mão das altas frequências. Dá pra você partir com o corte em 8000 ou 9000Hz. Fica excelente. Em português ou em espanhol, fica abafado. É nesse sentido que eu falo… a própria tecnologia deles, visa a língua deles. A sonoridade dá ênfase… talvez tenha a ver com a língua inglesa. E realmente, eu acho que o som do português gravado soa pior que o som do inglês gravado… vai entender por quê… O português é mais sibilante, tem mais variação de fonemas também… Acho que sensivelmente mais fácil mixar em inglês do que em português.

Mas eu determino por filme. O primeiro dia eu dou uma ouvida no som direto, faço uns testes, fecho as pontas e depois o médio eu vou buscar onde fica melhor em cada sequência. Essa é uma vantagem de trabalhar com o digital também. Quando você está no analógico, seu equalizador fica paradinho e você tem que equalizar meio que pela média da sequência ou então fazer cues muitos curtos. No digital não, você pode afinar plano a plano tranquilamente e quando precisa a automação está lá salva, é só ajustar.

 

AS: O que mais você utiliza de processamento na pré-mixagem de diálogo?

PG: Eu geralmente trabalho com os filtros das pontas, mais cinco bandas. Uma de médias que já vem descida, dois filtros mais fechados em altas e baixas com o Q em 3.0, 3.5, pra tirar mais ressonâncias de pontos mais fechados… e dois Q bem abertos para controlar graves e agudos e são todos equalizadores notchs.

No diálogo é onde eu tenho mais inserts. Eu uso um noise reduction, um equalizador, um compressor, um de-esser e um filtro com notch bem fechado pra frequências chaves, geralmente múltiplos de 60 hz por conta da frequência da corrente elétrica. Geralmente uso esses cinco inserts. É muito raro eu usar os cinco ao mesmo tempo, mas eu acho mais fácil ter eles todos já em mãos.

 

AS: Vamos falar agora um pouco do seu pai? Pra quem não conhece, Hugo Gama foi um técnico de som direto muito bem conceituado nas décadas de 1970 e 1980, mas que nos deixou em 1984. Eu gostaria de saber como foi o seu contato com ele, e o que ele deixou de influências pro seu trabalho.

PG: Na verdade eu conheci ele muito pouco. Quando ele morreu eu era muito pequeno. Eu tinha acabado de fazer cinco anos. Então, praticamente não me lembro dele. É curioso eu trabalhar com isso… talvez os “Freuds” da vida pudessem achar as conexões do porque eu também trabalho com som. É muito difícil para mim mensurar qual é a herança dele. É muito difícil saber o quanto me influenciou ou não. É claro que é um excelente cartão de visita. Isso sempre me ajudou como uma forma de chegar nos lugares, ou então… um diretor que já trabalhou com ele já chega e te trata com um outro respeito e tal. Isso certamente me ajudou. Mas tecnicamente eu não conheci nada dele, não sei como ele fazia as coisas.

Recentemente eu esta conversando com um cara… e foi curioso porque foi a primeira vez que eu ouvi um relato de algo que ele fez tecnicamente. Porque ele também gostava muito dessa parte de engenharia, e o pessoal tinha muita dificuldade de fazer um sincronismo que superasse cinco ou seis minutos. E ele fez uma gambiarra lá em uma câmera, acertando um ajuste de velocidade e usando o Pilotone no gravador, eles conseguiram fazer até 10 minutos o sincronismo; mais ou menos o tempo de um rolo de 1000 pés. Mas eu praticamente não lembro dele. Meus pais já eram divorciados na época. De certa forma, o único ressentimento que eu tenho é de não ter minha própria opinião sobre ele.

 

AS: Você chegou a assistir algum filme que o seu pai trabalhou?

PG: Assisti alguns, mas nunca tive muito o fetiche de ir atrás dos trabalhos dele. Uma vez o Beto Ferraz me mostrou o repertório de alguns trabalhos que meu pai fez. Foi interessante. Tinha um que era muito curioso. Era um comercial que tinha três carros parados em cima da linha de trem. E o trem vindo. E o cara tranquilamente falando: “Esse aqui é o novo modelo de ignição a frio”, porque era carro a álcool e tinha aquele drama de que carra a álcool não pegava em dia frio. E era essa a piada. De repente vinha os caras, entravam no carro e tiravam eles em cima do trem. Se o carro não pegasse, o trem levava. E estava muito bem feito. Com os apitos do trem, com reverb da distância… estava caprichado.

 

AS: Seu pai mixava também?

PG: Ele mixava, mas preferia não. O Beto me deu uma vez uma entrevista dele de uns quatro ou cinco minutos. E foi curioso porque foi a primeira vez que eu me lembro de ter ouvido a voz dele. Ele era um cara famoso por ser muito sério, trabalhador, firme… e eu tenho um perfil de ser mais bem humorado… e foi engraçado porque eu imaginava que ele tinha uma voz mais grave, mais séria. E ele tem a voz mais parecida com a minha, mais fina, esganiçada. Achei muito engraçado…

 

AS: E o que ele falava nessa entrevista?

PG: Ele falava sobre som. É curioso notar que muito dos problemas que ele se queixava acontece até hoje.

 

AS: Tipo quais?

PG: O problema é o seguinte O cinema é uma arte profundamente atrelada à tecnologia. O que você precisa para escrever um poema? Uma caneta e um papel. Não chega ser uma tecnologia de ponta… O que você precisa pra compor uma música? Um piano? Um negócio complexo, mas você comprou um piano e não precisa saber construir um piano. Então o cinema é uma arte profundamente ligada a tecnologia. Por isso que se a gente quer tentar fazer a estética norte-americana, a gente nunca vai conseguir superar eles. Porque é uma estética atrelada à tecnologia. E acho que esse é o grande mérito da proposta do Glauber Rocha da “estética da fome”. Quando ele fala de abrir mão das condições deles. Vamos trabalhar do nosso jeito.

E acho que essa é a grande questão que meu pai está levantando. Por ser uma indústria profundamente ligada com a tecnologia, no Brasil você não tem o desenvolvimento dessa tecnologia em paralelo à produção cinematográfica. A gente usa as câmeras importadas, o Pro Tools é um software norte-americano, etc. Outro problema é que muita pouca gente conhece a engenharia da coisa. Então, tudo é feito muito na base do tato. Por que? Lá fora, quem que é o cara que vai dar suporte quando você tem um problema na impressão de um negativo?… ou quando você está testando a kinescopia de uma Arrilaser. Quem vai te dar suporte? É o cara que desenvolveu a máquina. Ele vai até la na sua finalizadora. Vai a equipe de engenharia pra ver o que está acontecendo. Não igual a gente que troca meia-duzia de email com os caras que estão lá e tenta resolver aqui, tentando lidar dentro dos parâmetros que eles desenvolveram.

Então… tudo bem que eu não sou um grande fã da estética do Glauber. Gosto dos filmes dele, mas as vezes acho que ele exagera um pouco nessa busca pela liberdade, sacrificando um pouco coisas que são caras ao cinema. Mas a essência da proposta dele ainda é muito válida, e os tenho a impressão que meuitos cineastas deixaram essa questão um pouco de lado. E o nosso jeito não é simplesmente fazer a nossa estética. A estética pra mim é um paradigma equivocado. A arte tem que surgir de uma experiência profunda, e não por uma experiência só estética. Eu acho que a gente costuma filmar com um olhar muito gráfico e não lógico. Vai lá, registra a situação, mas não trás uma reflexão que abarca aquilo. Quando você trás a reflexão, o importante é a abordagem. E nisso o Glauber era muito bom. A proposta dele era construir a nossa lógica a partir das nossas possibilidades técnicas.

As vezes eu tendo a ter a impressão que o cineasta brasileiro se prende muito à realidade estrangeira. As condições de trabalho, os custos, etc. E acaba deixando de lado uma outra proposta construída com algo que seja relevante pra sociedade. Então, o parâmetro é a reflexão e não a estética. A estética que deveria ser a consequência, vira a causa. E aí você acaba esgotando um pouco as possibilidades de reflexão porque o importante passa a ser fazer bonito. 

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