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Jun 20 2011

Entrevista com José Luiz Sasso: Parte III

 

Última parte da entrevista com José Luiz Sasso. Espero que tenham gostado. Pra mim, foram muitos os aprendizados!

 

Artesãos do Som: Se tem discutido muito sobre a falta de comunicação entre os próprios profissionais de som entre as etapas de um filme, principalmente entre equipe de som direto e pós-produção de som…

José Luiz Sasso: O que existe sim hoje em dia é exatamente isso. Com a democratização dos sistemas se perdeu a essência dos padrões a serem seguidos. Quando o mundo era mais analógico existia uma rotina de estúdio, de filmagem, de tudo. Tinha uma rotina que era rigorosa, era um dogma. Ninguém ficava questionando se era isso ou se era aquilo porquê aquilo estava comprovado e funcionava. Então, os montadores sabiam dos problemas que eram as trocas de rolo do projetor, os editores sabiam o que significava isso, o técnico de som direto sabia que tinha que gravar da melhor maneira possível para ter um som bonito e usava no máximo três microfones… quando algum usava quatro microfones é que o cara era “O cara” e tinha o melhor equipamento do mundo. Porque o Nagra era um canal e o resto fazia no mixer na hora. O cara era bom pra caramba. Era um técnico de som que sabia operar na mesa, ou um pré na mesinha… o cara fazia transições maravilhosas. Posso citar n filmes que eu mixei com sons direto primorosíssimos. Hoje a coisa ficou fora do controle. Hoje, você compra um gravador de seis, de oito, de doze pistas. Coloca doze microfones que não conversam entre si quando estiverem todos juntos. Então, você tem a tecnologia indo contra você mesmo. E dentro disso, ninguém mais obedece nenhum padrão porquê o mundo digital também não está padronizado. Ainda se questionam coisas do mundo digital… qual é o melhor nível? É 24bits, 32bits, é 48, é 96, é 192bits? Os caras vão atirando pra todo quanto é lado e vê o quê que acontece. É uma tecnologia totalmente mutante. Por ser mutante não tem padrões fixos e, por esse motivo, há toda essa falta de conversa entre os sistemas. E ninguém se fala. Essa história que você tem hoje de técnico de som direto que não conversa com a finalização de som, a finalização de som e o músico que não conversam entre si, e outros que não se falam ao mesmo tempo, isso é normal. Virou rotina, enquanto antigamente não era.

Alguns anos atrás quando ainda as coisas tinham uma certa coerência, o cara escreveu o roteiro, fizeram tudo lá. Filmaram, gravaram o som direto ou ia dublar, seja lá a direção que o filme ia tomar. O montador ia para uma moviola junto com o diretor, eles sentavam e entravam num processo chamado de “digestão”. Digeriam aquele material que tinham, montavam em uma certa ordem, iam escolhendo e diminuindo, diminuindo… corte um, dois, três, dezoito, trinta… não interessa. Ficavam naquele processo de amadurecimento da obra durante quatro, cinco, seis meses para fazer uma bela montagem. Então aí você tinha o “copião”. Com o som direto ou seja lá o que for. Aí essa turma ia para um estúdio de mixagem, normalmente já era o estúdio que ia mixar o filme, e projetavam isso. E lá ia o diretor, o montador, o técnico de som direto, o possível editor de som, o assistente e não sei o quê, e assistiam em tela grande pra verem se o ritmo dos cortes estavam bons… Porque até então estava em uma moviola que tem uma telinha menor do que um monitor de computador. Mas aí assistiam em tela grande e falavam: “Não, vamos mudar aqui, corrigir ali”. Iam para uma edição de som, o montador sabia que o som é adiantado no filme 21 quadros no sistema óptico, então ele sabia que quando fosse fazer a emenda de rolo não podia ter nada de importante naqueles primeiros 21 quadros (20 ou 21. No sistema inglês é 21 e no americano 20, mas os dois são iguais porquê o inglês conta o zero e o americano começa no um – isso aliás tem polêmica até hoje. No Dolby Digital são 27 frames de diferença). Mas não interessa, porquê sabiam que aquilo lá, na hora que fosse emendar não podia fazer isso e tudo mais… Tudo isso tinha uma rotina. Aí entrava na mixagem e o copião era um dogma, era indiscutível, imutável. E quando o diretor resolvia remontar o filme na mixagem era um “fuzuê” porque tinha que rever pistas, voltar para a moviola, corrigir tudo… mas não interessa. Havia um consenso técnico entre todas as partes envolvida.

O técnico de som direto ia na projeção para tomar as decisões tipo: isso vai ter que ser dublado ou não. O técnico de som direto ia nos estúdios onde ia ser feito a transferência e ele fazia a sua transferência de áudio. Ficava junto com o técnico do estúdio transferindo do Nagra para a máquina de perfurado. Era normal, era o trabalho dele. Isso era um fato até antes do nosso presidente Color dar a martelada final e acabar com tudo. Então isso era normal. Jamais um técnico de som direto ia largar o seu trabalho dentro de um estúdio de som que não estivesse acompanhando a transferência… com o Nagra dele, porque as vezes não queria nem usar o equipamento do estúdio… com todo direito. Então, isso era feito de uma forma clássica.

Isso tudo foi pro beleléu quando entrou o Avid, e agora é o FinalCut e workstations de áudio. Isso virou um caos. Ninguém mais acompanha nada. E quando você começa a discutir demais já dá errado. Então, com a tecnologia, essa comunicação realmente acabou. Hoje, ninguém mais se fala. E as vezes você fala e o cara fica insultado. “Olha, vem aqui porque nós estamos com um problema sério e tal.”, “Nossa, mas eu gravei em doze canais e…”. “Pois é, os doze estão ruins”. Aí o cara vem e fica com aquela cara. Mas as vezes a culpa nem é do cara, tanto que eu nem discuto mais com técnico de som direto. Vem o que vier, eu dou uma melhorada e vamos embora. Porque também ele está trabalhando em condições adversas, o orçamento não sei o quê la… esquece! Eu não vou generalizar porque não pode se generalizar. Mas vamos dizer que 90% dos casos é isso aí. É aquela frase: “Na mixagem melhora”. Aliás, essa frase vem também de anos. Aí tudo bem, você chega aqui e fala: “Pô Zé, mas não melhorou né…”. Não! “E agora?” Agora faz aquilo que está escrito aqui no boletim de som: “Som guia – dublar”. “Ah não, mas eu não dublo.” Então vai assim. “Ah não, assim ta ruim”. Poxa, eu não estou discutindo se está bom ou ruim, aqui está escrito dublar. Dubla! “Não, tem que melhorar isso…” Não tem, ainda não fizeram o Milagrizer.

Aí você chega no diretor e fala: “Meu amigo, no áudio tem uma relação que é imperativa. Sinal/Ruído. Sinal é o que interessa. Ruído é o que a gente não quer. Se você tem o sinal acima do ruído, está tudo certo. Então, significa que você pode colocar qualquer coisa, um equalizador, um plug-in, etc; que você até consegue fazer com que esse ruído caia até mais… que o sinal fique mais evidente, o áudio te dá a sensação que está melhor. Agora, se você tem a relação oposta, você tem o ruído acima do sinal, não tem plug-in ou equalizador no mundo que vai ficar escolhendo quem é quem. Porque, o sinal está inferior ao ruído. E na hora que ele for processar, ele vai limpar o ruído e o sinal. Deu pra entender?” “Ah, nunca pensei nisso…” “Ta vendo que vale a pena?”.

 

AS: As vezes é a educação então também né?

JLS: Não existe formação acadêmica pra isso. Alguém vai sair de uma universidade para ser técnico de som? Com exceção de algumas pessoas que por acaso deram certo… O diretor não tem aula de som. Se discute conceitos e não técnicas. A minha breve passagem pela ECA/USP é exatamente isso. Eu falava disso… vamos falar de técnica. Vamos pensar o seguinte: tem um ferro de solda, você tem +, – e terra. Se você inverter o + pelo -, sai fora de fase. Então, se você pegar dois cabos com essa inversão, eles não se falam. Você quer ver? Aí eu gravava e falava: “Ta vendo? esse aqui é o canal um e esse é o canal dois. A hora que eu subir os dois níveis iguais não tem volume porque estão se cancelando. Claro! Olha que bonito! Eu fechei um, você ouve. Eu subo os dois, você não ouve.” Isso é fase eletrônica. Agora, tem fase acústica, fase de rádio, tem um monte de fase. Tem desvio de fase, tem soma de fase… Cara, foram três anos que eu dei aula lá e desisti. Então, o problema é que você não tem formação técnica. Quem sai da universidade quer ser roteirista, diretor de fotografia, diretor, montador. São coisas que te dão glamour, você está no meio dos holofotes. Técnico de som está no meio da lama lá.

E outra, o mercado não é assim. Você aprende por tradição oral, é uma coisa meio folclórica. Hoje você vai lá, compra um gravador. O cara nem sabe o que significa gravar em 24 bits, 48KHz. Eu recebo áudios que foram gravados em 24bits 48KHz, mas que não tem faixa dinâmica, não tem nível. “Ah, mas no digital não tem chiado.” Quem disse que o digital não tem chiado, não tem ruído? Ao contrário. Tem conversores. Para o digital chegar em um alto falante, que é uma coisa analógica, e ainda tem o amplificador, que também é uma coisa analógica, você tem que dar amplitude. No momento em que você deu amplitude vai aparecer distorções e ruídos da própria mídia digital. Se você começar a processar demais, você vai criar transientes, transientes e transientes. E isso vai virar um ruído. A gente brinca que é um Gremlin. É um chiado digital, não vamos reclamar. E tem um conceito tradicional por causa da restauração de som, você tem que respeitar aquilo que o áudio tem. Se ele é analógico da época da década de 1970, o chiado fazia parte do conceito daquele som. Você não pode transformar um som da década de 1970 num som do ano de 2011 que trabalha com o digital porquê ele não era assim. Se você transformar ele dessa forma, você está fazendo uma adulteração do trabalho que era. Então, você tem que encontrar um compromisso entre as coisas de tal uma forma que no século XXI aquilo não agrida você.

Então, hoje tem essa coisa toda de ficar discutindo toda essa tecnologia quando o mercado não está preparado para isso, porquê você não tem formação técnica. Qualquer um nos EUA que mixa, no mínimo ele tem conhecimento de eletrônica, tanto que o nome é sound engineer. Então, ele tem uma formação, ele sabe o quê que significa um circuito eletrônico. Quando eu aprendi a mixar lá no final da década de 1960, o Sr. Carlos Fozco que foi meu grande mestre de eletrônica, quando tudo era válvula, ele dizia com seu sotaque italiano: “Zé Luiz, o importante é você saber o que tem dentro da mesa, e não fora”. Fora da mesa qualquer um vem e sabe que girando o botãozinho, sobe e desce o volume. “Você tem que saber o que tem dentro da mesa para você saber até onde você pode espremer a mesa”. É a história da Fórmula I. O piloto é bom porque ele sabe até onde ele pode levar o carro dele. Por mais tecnologia que ele tem na mão, ele sabe aonde ele pode dar mais uma puxadinha pra chegar. É exatamente igual. O importante é você saber o quanto o equipamento rende pra você. Não adianta nada você comprar um puta carro de Fórmula I pra andar na Av. Paulista. Era melhor você comprar uma bicicleta. Você iria se dar muito melhor com a bicicleta na Av. Paulista do que com um carro de Fórmula I. Você não vai tirar da segunda marcha. Enquanto que na bicicleta você pode passar pra quarta, quinta ou décima e vai bem. Entendeu? É isso que as pessoas hoje perderam, essa relatividade das coisas. O que é mais fácil, o que é mais simples, o que é melhor ou pior dentro de um conceito. Então, falta isso. Falta prática. Quantos mixadores existem hoje no mercado? Tem 200. Agora, quantos sabem exatamente o que está sendo feito, o percurso certinho? Meia duzia.

Você pega nos EUA, por exemplo, o Walter Murch e o Ben Burtt criaram uma escola. Foi um momento onde eles disseram: “temos que fazer o som virar alguma coisa real dentro do filme, já que é um processo audiovisual e não visual-audio”. Esses caras, em um determinado momento, chegaram e falaram: “Não, nós podemos fazer de um filme ruim um filmaço, enfiando som nele”. Se você for analisar friamente, o que é um Star Wars? Se você passar esse filme mudo, você dorme.

Você pega hoje o 3D, aonde você vai ter que fazer um hiper-stereo em função do 3D. Os caras estão reinventado a roda. O cinema 3D já existia assim como já existiu o Odorama, que tinha cheiro dentro do cinema. Só que metade das pessoas eram alérgicas. Mas você não podia fazer filmes como “Passeando pelos esgotos de Paris”, já imaginou que maravilha que ia ser o cheiro da sala de cinema? Imagina o Apocalypse Now em Odorama, o Resgate do Soldado Ryan em Odorama?

Uma coisa é você discutir conceitos, outra coisa é você colocar isso na prática diante de um público. É óbvio que você sempre terá uma seleta parte desse público que tem interesse nisso, que vai querer pesquisar. Mas é um público seleto que vai ver uma obra de arte. O cinema é entretenimento e é obra de arte. Os nossos filmes continuam sendo filmes autorais. Muitas vezes de forma acertada, mas a maioria ainda de forma equivocada. E ainda não é uma indústria que se sustenta.

 

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